/

Sofonisba Anguissola, a pintora admirada por Michelangelo e “apagada” da História

1

Wikimedia

Autoretrato de Sofonisba Anguissola

Aprendiz de Michelangelo, reconhecida pelo Papa e pintora da realeza espanhola.

Sofonisba Anguissola pode ser considerada uma mulher pioneira por ter conseguido reconhecimento artístico na época da Renascimento.

Mas, à exceção de apreciadores e críticos de arte, é ainda hoje para muitos um nome desconhecido.

De talento prodigioso, Sofonisba impressionou Michelangelo aos 20 e poucos anos, tornando-se uma artista famosa e viajada que conheceu e pintou grandes personalidades até sua morte. No entanto, a sua popularidade não se compara à de colegas como Da Vinci, Rafael ou Caravaggio.

Nasceu em 1532 na região de Cremona, na Itália, numa família nobre. O pai, Amilcare Anguissola, teve a atitude pouco comum na época de a transformar numa pintora profissional. Na realidade, incentivou não só o filho Asdrubale, como também todas as filhas mulheres a obter uma educação de alto nível e a desenvolver as suas habilidades artísticas.

Com o tempo, o talento de Sofonisba destacou-se dos demais, ao ponto de aos 14 anos, ter passado a ter aulas com o pintor italiano Bernardino Campi.

Um de seus quadros mais famosos é um retrato das suas irmãs a jogar xadrez, um jogo tipicamente masculino na época da artista — bastante associado à ideia da racionalidade —, no qual as jovens dominam a partida.

Ou seja, Sofonisba vivia em uma família atípica de mulheres que sabiam usar muito bem habilidades consideradas, até então, masculinas.

Segundo Claudinei Cássio de Rezende, professor de história da arte na PUC-SP e pós-doutorado em História Moderna, era muito difícil para uma mulher que não pertencesse a uma classe abastada tornar-se artista, “porque a questão da arte, antes de mais nada, era uma questão de classe”.

Sofonisba também começou a trocar correspondência com Michelangelo. Depois de ver o esboço do retrato de uma menina a rir, o artista terá pedido pediu à jovem espanhola que retratasse um menino a chorar — uma vez que, para ele, era mais fácil desenhar pessoas sorridentes. A pintora enviou então um esboço em carvão do irmão em prantos após ter sido mordido por um caranguejo.

Impressionado, Michelangelo reconheceu o imenso talento da obra e compartilhou seus esboços com a autora, oferecendo conselhos e uma espécie de tutoria informal. Acredita-se que a obra em carvão de Sofonisba tenha inspirado, anos depois, a pintura Rapaz mordido por um lagarto, de Caravaggio.

Não demorou para que Sofonisba ganhasse fama internacional, tornando-se a primeira artista mulher com tal registo na história.

De acordo com Rezende, Sofonisba pertencia a um grupo muito particular: o de mulheres artistas.”Isso é uma coisa muito rara, especialmente no Renascimento e no mundo Barroco, ela ser a primeira mulher — ou pelo menos que tenhamos consciência — que tenha um relato documentado que chegou a ser uma pessoa conhecido.”

Em 1569, artista chamou a atenção do governador espanhol de Milão, o duque de Sessa. Acabou a ser convidada para ser dama de companhia da rainha da Espanha durante o reinado de Filipe II — quando desempenhou, na verdade, a função de retratista da família real. O Papa Pio IV chegou, inclusive, a pedir para que fizesse um retrato da rainha da Espanha.

Para Rezende, o facto de Sofonisba ter ganhado prestígio também se reflete muito no tempo em que viveu. É naquela época que o status social do artista passa a prevalecer. “O que nós tínhamos até então eram artífices, portanto a arte era vista como mero artesanato. A arte passa a significar a arte como a entendemos hoje a partir deste momento”, explica.

Todavia, o facto de Sofonisba ser uma pintora “não-oficial” da corte, e raramente assinar suas obras, fez com que muitos de seus trabalhos fossem atribuídos a outro artistas — especialmente ao pintor oficial da corte, Alonso Sánchez Coello.

Após a passagem pela na corte espanhola, a pintora regressou a Itália, onde viveu até sua morte, em 1625, aos 93 anos. Pouco antes, deixara de ser aprendiz e torna-se mestre, orientando Anthony van Dyck, que viria a ser o principal pintor da corte na Inglaterra.

O seu segundo marido pediu para que as seguintes palavras fossem gravadas no seu túmulo, na Igreja de San Giorgio dei Genovesi, em Palermo, em Itália: “Para Sofonisba, uma das mulheres ilustres do mundo pela sua beleza e pela suas extraordinárias habilidades naturais, tão distinta ao retratar a imagem humana que ninguém de seu tempo poderia igualá-la”.

Hoje, cada vez mais obras de sua autoria estão a ser identificadas, garantindo o legado desta mulher notável.

Marketing do século 16

Sofonisba Anguissola foi uma das primeiras mulheres a romper num círculo que até então era dominado por homens. Mas como é que conseguiu isso? Na realidade, a resposta está na própria pergunta: com a ajuda de homens. É o que afirma a socióloga Isabelle Anchieta, autora da trilogia Imagens da Mulher no Ocidente Moderno.

“Ela tem 12 autorretratos até hoje reconhecidos, talvez a única mulher que tenha usado o autorretrato como uma estratégia de autopromoção. Quem vai recorrer à técnica, só no século XX, é Frida Kahlo. O pai de Sofonisba vai enviar esses retratos para várias cortes e figuras importantes. Não é só o talento, existe uma armação social interessante, uma estratégia de marketing que foi feita não só por ela, mas também pelo próprio pai”, analisa Isabelle.

Em muitos casos, como aconteceu também com a artista Lavinia Fontana, os pais foram fundamentais para romper as barreiras de gênero e incentivar as filhas. Mas, segundo a socióloga, tal não pode ser usado de forma alguma para menosprezar o trabalho dessas artistas.

“Hoje temos o entendimento de que elas não estavam subordinadas aos pais, mas era o meio mais eficaz e estratégico para elas conseguirem entrar no mercado de arte. Isto não diminui o talento delas, pelo contrário, mostra astúcia.”

O legado

Sofonisba foi pioneira em vários aspectos — o fato de ter sido aprendiz de pintores locais também abriu um precedente para que as mulheres pudessem ser aceitas como estudantes de arte.

E, embora quase todos os ícones do Renascimento sejam homens, a pintora viveu até os 93 anos com o status social de uma artista, de uma celebridade e de uma pessoa grandiosa, conforme explica Rezende.

Mas por que então o seu nome não é citado da mesma forma que o de seus colegas do sexo masculino?

De acordo com a socióloga Isabelle Anchieta, “a história das mulheres é feita mais de apagamentos do que de ausências“. De fato, pelas limitações históricas, o número de mulheres artistas é menor que o de homens, mas isso não significa que elas não existiram.

“O que está a acontecer agora é uma recuperação desses quadros, de uma recolocação das mulheres na história, em vários os sentidos. Estamos a redescobri-las. E acho que isso diz respeito às mulheres em todos os setores, inclusive o artístico”, avalia.

Mulheres nos museus

Sofonisba Anguissola abriu portas para outras artistas, incluindo Lavinia Fontana, que, no seu autorretrato de 1577, inspirou-se nos modelos da colega para ressaltar o mesmo status de mulher culta e artista. Entre 2019 e 2020, o Museu do Prado, na Espanha, realizou uma exposição conjunta, pela primeira vez, dessas duas artistas que marcaram o Renascimento.

Na época, o diretor do Prado, Miguel Falomir, descreveu a escassez de obras femininas no museu como uma injustiça que a instituição está a tentar corrigir. Já o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) abriu em 2019 a exposição História das mulheres, histórias feministas: antologia. Entre as obras presentes, estava um autorretrato de Sofonisba.

ZAP // BBC

Siga o ZAP no Whatsapp

1 Comment

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.