O português Maciel Vinagre pensou que era mentira ou engano ao ler a notificação de que tinha sido distinguido pela Rainha Isabel II pelo trabalho como responsável da limpeza de dois hospitais públicos britânicos durante a pandemia.
“Estava no escritório e recebi um email do ‘Cabinet Office’ [ministério do Governo] a dizer que tinha sido distinguido na lista da Rainha. No princípio pensava que era mentira, só pode ser engano. Os meus colegas disseram-me para apagar porque podia ser fraude”, contou, entre risos, à agência Lusa.
O madeirense de 45 anos, natural de São Vicente, foi um dos trabalhadores do serviço de saúde público britânico (NHS) reconhecido na lista deste ano de condecorações pelo aniversário da Rainha por serviços prestados durante a pandemia com a Medalha do Império Britânico (‘British Empire Medal’, designada pelo título BEM).
“Nunca na vida pensei que poderia receber uma medalha destas”, confiou, ainda incrédulo, o diretor adjunto dos serviços de limpeza e restauração dos hospitais de Ashford e de St. Peter’s, no sudoeste de Londres, perto do aeroporto de Heathrow.
A nomeação para a insígnia foi feita por colegas e superiores pelo “conhecimento e criatividade” que demonstrou para prevenir e conter a infeção pelo novo coronavírus dentro dos hospitais e proteger não só os doentes, mas também funcionários, introduzindo novas tecnologias e produtos.
O diretor médico dos hospitais, David Fluck, elogiou o português pela “forte liderança durante toda a pandemia numa equipa que desempenhou um papel fundamental na redução do risco de transmissão da covid-19 nos nossos hospitais”.
“[Vinagre] introduziu mudanças na maneira como mantemos a limpeza dos nossos hospitais daqui para frente, o que vai proteger muitos pacientes e funcionários de perigo, mesmo após o fim da pandemia”, afirmou este responsável.
Uma das inovações foi a contratação de uma empresa especializada em desinfestação para aplicar através de vapor um produto desinfectante que encontrou e que mantém as superfícies livres de vírus e bactérias durante 30 dias.
“Era um produto novo no mercado e não sabíamos se era eficaz. Mas contratámo-los para descontaminarem desde corredores a casas de banho e escadas em turnos de 24 horas por dia. Valeu a pena, o hospital tem uma das taxas de mortalidade mais baixas da zona.
Esterilização de máscaras
O português deparou-se com outro desafio quando, em plena crise, a enfermeira chefe pediu uma solução que permitisse esterilizar máscaras de proteção dos profissionais de saúde para serem reutilizadas porque não sabia se ia receber um novo abastecimento, uma situação que afetou vários hospitais no Reino Unido.
“Mandei fazer uma linha tipo de secar roupa, pendurámos máscaras e esterilizámos 500 em três dias com luzes ultravioleta. Felizmente não foi preciso porque chegaram novas, mas se fosse preciso estava o processo pronto”, contou Vinagre à Lusa.
O português também foi elogiado pela forma como conseguiu recrutar rapidamente trabalhadores para compensar as ausências e também pela forma responsável e sensível como soube motivar os empregados de limpeza numa altura em que muitos estavam preocupados com o risco que eles próprios corriam.
Quatro funcionários dos hospitais morreram de covid-19, incluindo um empregado de limpeza sob as ordens de Vinagre, um compatriota de 71 anos chamado Manuel Santinhos. “Ele nunca quis ir para casa, quis continuar sempre a trabalhar.
Esteve três semanas nos cuidados intensivos. Foi muito complicado porque os colegas ficaram com mais medo. Mas fizemos uma missa com um padre e a diretora teve uma reunião com os empregados para motivá-los e conseguimos”, explicou.
Maciel Vinagre recorda “momentos muito difíceis” entre março e junho, os piores meses da primeira vaga da pandemia, quando os dias de trabalho chegavam a estender-se por 15 horas. A liderança do português ajudou a dar visibilidade e importância às equipas de limpeza hospitalar pelo papel crucial desempenhado no combate à doença que já matou mais de 44 mil pessoas no país.
Um dos 414 “heróis anónimos”
Vinagre é um dos 414 “heróis anónimos” a quem foram conferidas condecorações da Rainha em reconhecimento da intervenção “excecional” durante a crise, desde cientistas e enfermeiros a pessoas que produziram equipamento de proteção ou ofereceram refeições a profissionais de saúde e professores de ginástica que deram aulas gratuitas pela Internet durante o confinamento.
A Rainha agracia dezenas de pessoas duas vezes por ano, no Ano Novo e por ocasião do aniversário oficial, em junho, por recomendação do Governo. Muitas são personalidades conhecidas em áreas como o desporto, artes ou serviço público, mas também são galardoados desconhecidos cujo mérito é avaliado por um comité oficial.
Este ano, a divulgação da lista foi adiada até outubro para ter em conta nomeações de pessoas que desempenham papéis cruciais durante os primeiros meses da pandemia e deu prioridade aos “heróis da linha da frente” e da comunidade que foram além das suas obrigações para ajudar os outros.
A Medalha do Império Britânico remonta a 1917 e era sobretudo atribuída a civis e militares, mas em 2011 foi restabelecida como uma condecoração a pessoas que se distinguem por contribuições para a comunidade, seja através da profissão ou de voluntariado.
Ao contrário da Ordem do Império Britânico, que inclui os graus de membro (MBE), Oficial (OBE), Comandante (CBE) ou Cavaleiro e Dama (KBE e DBE) e que é conferida pessoalmente pela Rainha ou pelo Príncipe Carlos, a BEM é presenteada pelo ‘Lord Lieutenant’, um dignatário local, em nome da monarca.
Antes, só se conhecem dois portugueses que foram agraciados pela Rainha Isabel II: a pintora Paula Rego, ordenada em 2010 Dama Oficial da Ordem do Império Britânico, e Lino Pires em 2013, proprietário de um restaurante, com uma BEM por serviços prestados à comunidade ao angariar fundos para causas sociais.
Ao auferir estes títulos, os distinguidos podem usar a sigla correspondente na sua assinatura, após o nome.
Vinagre chegou ao Reino Unido aos 18
Maciel Vinagre chegou ao Reino Unido aos 18 anos, deixando para trás estudos em contabilidade para trabalhar num restaurante e aprender a língua inglesa e “tentar uma vida melhor”. Começou como empregado de limpeza no hospital de Ashford em 1997 e chegou ao atual posto de diretor adjunto em 2011, tendo desempenhado entretanto outras funções noutros hospitais do Reino Unido.
Mesmo sem um curso superior, acumulou formações profissionais que lhe permitiram progredir até um nível que dificilmente conseguiria em Portugal, e hoje lidera cerca de 200 pessoas, entre os quais 30 portugueses.
“Gosto do Reino Unido porque aqui dão valor à experiência, a pessoas dedicadas e empenhadas e menos aos títulos académicos. Reconhecem o mérito próprio”, disse à Lusa.
Dependendo da evolução da pandemia, o português e todos os restantes BEM serão convidados para uma festa no Palácio de Buckingham no próximo ano, na presença de membros da família real. “Os meus pais estão na Madeira e estão muito orgulhosos. Mas se eu puder levar alguém, levo a minha filha”, já decidiu.
// Lusa