Sabotagem dos pagers do Hezbollah começou há 10 anos. Mossad criou um “Truman Show”

WAEL HAMZEH/EPA

Amigos e familiares de feridos chegam ao Centro Médico da Universidade Americana de Beirute após o incidente com dispositivos sem fios de membros do Hezbollah em Beirute.

60 Minutes confirma plano de longa data de Israel. “Não fazem a mínima ideia de que estão a comprar à Mossad. Fazemos como o ‘Truman Show’, tudo é controlado por nós, nos bastidores. O mundo é o nosso palco”.

A famosa agência de informações de Israel, a Mossad, planeava há uma década a operação que culminou com as explosões coordenadas de milhares de pagers e walkie-talkies do grupo Hezbollah, em setembro deste ano, considerada a maior falha de segurança do grupo na guerra contra Israel e que mudou o rumo do apoio ao Irão.

O trabalho de base da operação, que pode ser visto como uma versão moderna do cavalo de Troia, começou mais de 10 anos antes das explosões que deixaram 3.000 feridos, revela nova reportagem do 60 Minutes.

Engenheiros da Mossad conceberam walkie-talkies que funcionavam como dispositivos explosivos e introduziram-nos na cadeia de abastecimento do Hezbollah através de empresas de fachada, incluindo uma num edifício na Hungria, para enganar os taiwaneses da empresa Gold Apollo e convencê-los a fazer parceria com eles.

O Hezbollah comprou, sem saber, mais de 16 mil destes dispositivos, revelam agentes da Mossad recentemente reformados, que desempenharam papéis importantes na operação e aceitaram falar com a CBS News sobre a megaoperação.

“A Gold Apollo não fazia a mínima ideia de que estava a trabalhar com a Mossad”, explica Gabriel — “e o Hezbollah também não”.

Como os explosivos foram instalados nos pagers

Os walkie-talkies foram concebidos para se adaptarem perfeitamente a coletes táticos, misturando-se com o equipamento operacional do Hezbollah. O bolso estava perto do coração.

A fonte da Mossad garante: “se carregarmos no botão, a única pessoa que se vai magoar é o próprio terrorista. Mesmo que a sua mulher ou a sua filha estejam ao seu lado, ele é o único que vai ficar ferido. Testamos tudo o triplo, o dobro, várias vezes, para nos certificarmos de que os danos são mínimos”.

Em setembro de 2024, a Mossad detonou os dispositivos remota e simultaneamente, provocando o caos.

A agência de espionagem fez engenharia reversa dos pagers fornecidos pela Gold Apollo do Taiwan, incorporando os explosivos sem comprometer a funcionalidade dos aparelhos usados para comunicar.

“O walkie-talkie era uma arma, tal como uma bala, um míssil ou um morteiro”, explica Michael (nome fictício), à CBS.

Campanha de desinformação

Para ganhar a confiança do Hezbollah, a Mossad lançou uma sofisticada campanha de desinformação. Anúncios e testemunhos falsos e narrativas estrategicamente plantadas apresentavam os pagers como os mais avançados do mercado.

Outras pessoas quiseram comprar o aparelho. “Recebemos vários pedidos de potenciais clientes habituais. Obviamente, não enviámos a ninguém. Limitámo-nos a apresentar um preço elevado”, diz um dos ex-agentes.

Até mesmo intermediários involuntários, incluindo uma vendedora de confiança da Gold Apollo, terão ajudado a Mossad a infiltrar-se no processo de aquisição do Hezbollah.

Em setembro de 2024, os agentes do Hezbollah já transportavam aproximadamente 5.000 destes pagers armadilhados.

“Temos um leque incrível de possibilidades de criar empresas estrangeiras que não podem ser rastreadas até Israel. Empresas de fachada sobre empresas de fachada para afetar a cadeia de abastecimento a nosso favor”, explica o comandante da operação.

Quando nos compram, não fazem a mínima ideia de que estão a comprar à Mossad. Fazemos como o ‘Truman Show’, tudo é controlado por nós, nos bastidores“, disse.

“Criámos um mundo a fingir. Somos uma empresa de produção global: Escrevemos o argumento, somos os realizadores, somos os produtores, somos os atores principais”, disse o ex-agente da Mossad. “O mundo é o nosso palco” (…) e “eles [Hezbollah] conseguiram um bom preço”.

Dispositivos explodiram ao mesmo tempo

Em 17 de setembro, a Mossad ativou remotamente os pagers em todo o Líbano. Os dispositivos causaram ferimentos graves, desde membros dilacerados à cegueira, entre os milhares de operacionais do Hezbollah. Os hospitais encheram-se de feridos.

No dia seguinte, foi a vez dos walkie-talkies, adormecidos, serem detonados, alguns durante funerais de vítimas do dia anterior, das explosões de pagers.

Os ataques resultaram em cerca de 30 mortes, incluindo duas crianças, e deixaram cerca de 3.000 feridos.

Batalha psicológica

Para além dos danos físicos, a operação teve como objetivo deferir um golpe psicológico no Hezbollah.

“Um dia depois da explosão, as pessoas tinham medo de ligar os aparelhos de ar condicionado no Líbano, porque tinham medo que explodissem”, disse o ex-agente: “havia um medo real“.

O líder do grupo xiita, Hassan Nasrallah, parecia derrotado nos discursos públicos que se seguiram. Depois, Israel atacou por ar, visando infraestruturas críticas do Hezbollah, e acabou por atingir o bunker de Nasrallah, onde este foi morto.

Este foi, para o ex-agente da Mossad, “o ponto de viragem da guerra“. Em novembro, chegou o cessar-fogo, já com o Hezbollah enfraquecido.

Guerra podia ter sido evitada?

O plano original para os walkie-talkies poderia ter levado não só a ferir mais de 3 mil operacionais do Hezbollah, mas também a matar mais de 15 mil.

Fontes israelitas citadas pelo The Jerusalem Post acreditam que, se o programa de walkie-talkies tivesse sido levado a cabo em outubro de 2023, poderia ter matado cerca de 15.000 membros do Hezbollah, o que faria com que o grupo fosse derrotado nessa altura, evitando, supostamente — e segundo a premissa israelita — 14 meses de guerra com o grupo terrorista, bem como a necessidade de evacuar 80 mil residentes do norte de Israel durante meses.

“Queremos que eles se sintam vulneráveis, o que é o caso”, disse o agente da Mossad à CBS: “não podemos voltar a usar os pagers porque já o fizemos. Já passámos à próxima coisa. E eles vão ter de continuar a tentar adivinhar qual é a próxima coisa.”

Tomás Guimarães, ZAP //

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