Pela primeira vez, Haia quer prender líderes Talibã pelo que fazem às mulheres

Wakil Kohsar / AFP

Talibã passa por um salão de beleza com imagens de mulheres desfiguradas em Cabul, Afeganistão

O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu, pela primeira vez, mandados de captura contra os líderes Talibã, no Afeganistão, pelo tratamento que dão às mulheres.

No dia 8 de junho, a Câmara de Pré-julgamento II do TPI, em Haia (Países Baixos), citou motivos razoáveis para acreditar que o líder supremo Talibã, Haibatullah Akhundzada, e o presidente do Supremo Tribunal Abdul, Hakim Haqqani, eram culpados de “ordenar, induzir ou solicitar o crime contra a humanidade de perseguição de género”.

Os mandados de prisão – os primeiros de sempre por perseguição com base no género – estão a ser saudados como uma “importante reivindicação e reconhecimento dos direitos das mulheres e raparigas afegãs”.

Mas – questiona Yvonne Breitwieser-Faria, professora de Direito Penal e Direito Internacional, Universidade de Curtin (Austrália), num artigo no The Conversation – será que vão melhorar a situação das mulheres e raparigas no Afeganistão, uma vez que os Talibãs não reconhecem o tribunal nem a sua jurisdição?

Os Talibãs negam as alegações e condenam os mandados como um “ato claro de hostilidade e um insulto às crenças dos muçulmanos de todo o mundo”.

Eliminadas da vida pública

Desde o regresso dos Talibãs ao poder, em agosto de 2021, foram impostas ao povo afegão um conjunto de novas regras e proibições rigorosas.

As mulheres e as raparigas têm sido alvo de um tratamento ainda pior devido ao seu género.

De acordo com os mandados, os talibãs “privaram severamente, através de decretos e éditos, as raparigas e as mulheres dos direitos à educação, à privacidade e à vida familiar e das liberdades de movimento, expressão, pensamento, consciência e religião”.

As mulheres são proibidas de entrar em locais públicos e as raparigas de frequentar a escola quando completam 12 anos.

Zahra Nader, editora-chefe da redação Zan Times, que investiga as violações dos direitos humanos no Afeganistão, diz que as mulheres e as raparigas afegãs estão a ser silenciadas, restringidas e privadas dos seus direitos humanos básicos.

É este sistema discriminatório de controlo das mulheres e das raparigas no Afeganistão que está no centro da acusação do tribunal.

Os mandados também acusam os Talibãs de perseguir “outras pessoas que não se conformam com as expectativas ideológicas dos Talibãs em matéria de género, identidade ou expressão de género; e por motivos políticos contra pessoas consideradas ”aliadas das raparigas e das mulheres”.

Crimes contra a humanidade

O direito internacional define claramente as infrações que constituem crimes contra a humanidade. A definição constante do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional inclui a privação grave da liberdade pessoal, o assassínio, a escravatura, a violação, a tortura, a deportação forçada ou o apartheid.

Especificamente, os líderes Talibã são acusados ao abrigo do artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Estatuto de Roma, que estabelece o seguinte “Perseguição contra qualquer grupo ou coletividade identificável por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de género […] ou outros motivos universalmente reconhecidos como inadmissíveis pelo direito internacional”.

A violência física e direta não é necessária para que seja estabelecida a perseguição por “razões de género […]”. São suficientes formas sistémicas e institucionalizadas de dano, que podem ser a imposição de normas sociais discriminatórias.

As mulheres e as raparigas são frequentemente afetadas de forma desproporcionada pelas políticas e normas Talibã. Mas provar que ocorreram crimes baseados no género não é suficiente. A intenção discriminatória também tem de ser estabelecida.

Os talibãs têm sido abertos quanto às suas crenças e interpretações religiosas, o que sugere uma clara intenção de perseguição com base no género.

Mulheres afegãs querem mais do que “simbolismo”

Tal como noutros casos, o tribunal depende da cooperação dos Estados para executar e entregar os acusados.

O governo provisório de Cabul, formado após a invasão liderada pelos EUA em 2001, tornou-se parte do Estatuto de Roma em 2003.

O Afeganistão continua a ser legalmente obrigado a processar os autores destes crimes – tem de aceitar a jurisdição do Tribunal nesta matéria.

O Purple Saturdays Movement (Movimento dos Sábados Púrpura), um grupo de protesto liderado por mulheres afegãs, está a alertar para o facto de os mandados de detenção deverem ser mais do que meramente simbólicos.

O facto de não se proceder à acusação resultaria provavelmente numa escalada das violações dos direitos humanos: “Os Talibãs têm respondido à pressão internacional não com reformas, mas com a intensificação das suas políticas repressivas”.

É importante notar que as políticas rigorosas e os abusos generalizados contra as mulheres e as raparigas no Afeganistão continuam, apesar da intervenção do Tribunal Penal Internacional.

O Movimento das Mulheres Afegãs no Exílio pretende que seja criado um comité judicial internacional independente para acompanhar e acelerar o processo judicial.

Ainda não é claro se os mandados conduzirão efetivamente a detenções e a processos judiciais em Haia. No entanto, os mandados de detenção são um passo de esperança no sentido da responsabilização dos talibãs e da justiça para as mulheres e raparigas do Afeganistão.

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