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O crânio fóssil da Criança de Taung abalou o mundo. 100 anos depois, África não festeja

Didier Descouens / Wikipedia

Molde do crânio da Criança de Taung (Australopithecus africanus) encontrado na África do Sul em 1924

Há 100 anos, a descoberta do crânio fóssil do primeiro Australopithecus africanus lançou a controvérsia acerca das origens da espécie humana — que era procurada fora do continente africano. Um século mais tarde, um grupo de investigadores revisita o debate.

Em 1924, o antropólogo e anatomista, Raymond Dart, adquiriu um bloco de sedimentos calcificados de uma pedreira de calcário na África do Sul. Dart retirou cuidadosamente um crânio fóssil deste material.

O hominídeo a que o crânio pertencia foi apelidado de Criança de Taung, uma referência ao local da descoberta e à sua tenra idade.

Poucos meses depois, a 7 de fevereiro de 1925, publicou na revista Nature um artigo com a descrição do que considerava ser uma nova espécie de hominídeo, o Australopithecus africanus.

A comunidade científica internacional rejeitou esta hipótese. Na altura, os cientistas procuravam as origens humanas fora de África e argumentavam que o crânio pertencia mais provavelmente a um primata não humano.

Décadas mais tarde, após subsequentes descobertas de fósseis semelhantes noutros locais de África, seria feita justiça a Dart — atualmente retratado como presciente e aclamado por elevar a importância de África na narrativa das origens humanas.

Mas será esta uma narrativa tendenciosa e simplificada?

A questão é lançada por Rebecca Ackermann e Robyn Pickering, investigadoras da Universidade da Cidade do Cabo, e Lauren Schroeder, antropóloga da Universidade de Toronto, num artigo no The Conversation.

A descoberta ocorreu durante um período marcado pelo colonialismo, racismo, segregação racial e apartheid na África do Sul. A história da investigação sobre as origens humanas está, portanto, entrelaçada com a desigualdade, a exclusão e ideias cientificamente incorretas.

Neste contexto social, visto sob um olhar contemporâneo, a figura de Dart e a paleoantropologia no continente africano em geral, são complexas e merecem reflexão.

Recentemente, o South African Journal of Science publicou uma edição especial para assinalar o centenário do artigo original de Dart.

Um grupo de investigadores africanos e colaboradores internacionais, entre os quais Ackermann, Pickering e Schroeder, contribuíram com artigos que oferecem perspetivas sobre a ciência, a história e o legado da paleoantropologia na África do Sul e não só.

Os investigadores estavam particularmente interessados em explorar a forma como a história da descoberta dos primeiros hominídeos na África do Sul influenciou o campo científico da paleoantropologia.

Promoveu ou limitou a investigação científica? De que forma? Quais foram os seus efeitos culturais? E como é que estes se manifestam agora, um século depois?

Os artigos desta edição especial abordam uma série de questões e destacam debates em curso no campo da investigação da evolução humana em África, com o objetivo de celebrar a ciência notável que a descoberta do A. africanus permitiu.

A marginalização e o apagamento de vozes

Há vários temas fundamentais que atravessam as contribuições desta edição especial.

Um deles é o das vozes não ouvidas. O quadro colonial em que decorreu a maior parte da investigação paleoantropológica na África do Sul excluiu todos os grupos, exceto alguns. Isto é particularmente verdade para as vozes indígenas.

Como legado, poucos investigadores africanos em paleoantropologia são os primeiros autores de investigações proeminentes ou lideram equipas de investigação internacionais.

Demasiadas vezes, o património paleoantropológico africano é do domínio de equipas internacionais que realizam investigação no continente com pouca colaboração de investigadores africanos locais. Trata-se de uma “ciência de helicóptero“.

Equipas mais diversificadas produzirão melhores trabalhos no futuro, e os cinetistas da área devem conduzir mais ativamente este processo, salientam Ackermann, Pickering e Schroeder.

A predominância de pontos de vista masculinos ocidentais faz parte do quadro colonial. Este tema também está presente na maior parte dos trabalhos desta edição especial.

Numa tentativa de corrigir alguns dos desequilíbrios, a maioria dos autores da edição especial são mulheres, especialmente mulheres africanas e, de um modo mais geral, africanas negras.

Muitos dos artigos apelam a uma abordagem mais ponderada e equitativa da inclusão de investigadores, técnicos e escavadores africanos no futuro: em workshops e seminários, em organismos profissionais, como colaboradores e criadores de conhecimento, e em práticas de autoria.

Comunidade e prática

Os legados coloniais também se manifestam numa falta de capacidade de resposta social — a utilização de conhecimentos profissionais especializados para um objetivo ou benefício público.

Este é outro tema da edição especial da South African Journal of Science. Por exemplo, Gaokgatlhe Mirriam Tawane, Dipuo Kgotleng e Bando Baven analisam os efeitos mais alargados da descoberta da Criança de Taung na comunidade de Taung.

Tawane é paleoantropóloga e cresceu no município de Taung. No seu artigo, argumenta que, um século após a descoberta, há poucas (ou nenhumas) razões para a comunidade local o celebrar: é necessário fazer mais, não só para retribuir à comunidade, que é assolada por lutas socioeconómicas, mas também para criar confiança na ciência e entre as comunidades e os cientistas.

Os investigadores têm de compreender que é importante envolver as pessoas para além do meio académico. Não se trata apenas de divulgar conhecimentos científicos. Pode também enriquecer as comunidades e co-criar uma bolsa de estudos mais matizada, ética e relevante.

Os investigadores devem tornar-se mais reactivos do ponto de vista social e as instituições devem impor aos investigadores padrões de prática mais elevados, notam Ackermann, Pickering e Schroeder.

Outro tema que emerge desta edição especial é o valor e a necessidade de instalações laboratoriais locais de excelência para a realização de investigação baseada nos fósseis e depósitos a eles associados.

Um maior investimento em instalações laboratoriais locais e no desenvolvimento de capacidades pode criar uma mudança no sentido de o trabalho local sobre o conteúdo ser liderado por africanos. Pode também aumentar a colaboração pan-africana, desmantelando a prática atualmente comum de os investigadores africanos serem atraídos para redes internacionais separadas.

É importante que os organismos internacionais de financiamento aumentem o investimento na paleoantropologia africana — o que facilitará o crescimento interno e as redes de colaboração locais.

É também necessário investimento internacional e sul-africano para aumentar a capacidade de investigação local. O património fóssil é um bem nacional, concluem as autoras do artigo.

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