Há mil anos, os mortos percorriam o ‘destino das almas’ enterrados em canoas

PLOS ONE

Enterro Mapuche. A fotografia mostra um ritual fúnebre com um wampo.

Até há mil anos, no terrirório que é atualmente a Patagónia, os defuntos eram enterrados em canoas e lançados aos rios, numa cerimónia que representava a sua jornada final para a terra dos mortos, revelou um novo estudo.

Esta descoberta, descrita num artigo publicado recentemente na PLOS One, reafirma os relatos etnográficos e históricos de que este tipo de funeral era praticado em toda a América do Sul pré-hispânica, refutando a ideia de que possa ter sido aplicado ​​somente após a colonização espanhola, avançou o Live Science.

“Esperamos que esta investigação e os seus resultados resolvam essa controvérsia”, disse o arqueólogo Alberto Pérez, professor associado de antropologia da Universidade Católica de Temuco, no Chile, e principal autor do estudo.

Os funerais em canoas estão documentados e são ainda praticados em algumas áreas da América do Sul, disse Pérez. Mas como a madeira apodrece rapidamente, esta descoberta é a primeira evidência da prática desde o período pré-hispânico. “A evidência anterior baseava-se em dados etnográficos, mas era indireta”, referiu.

No funeral descrito no estudo, os familiares enterraram uma mulher de costas, numa estrutura de madeira feita de um único tronco de árvore modelado pelo fogo. A mesma técnica tem sido usada há milhares de anos na cultura Mapuche para fazer canoas conhecidas como “wampos”.

 

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Reconstrução da posição do corpo e artefatos associados.

As evidências encontradas sugerem que os indígenas prepararam os restos mortais da mulher para que esta pudesse embarcar numa viagem através das águas para a sua morada final, no “destino das almas”, indicou Pérez.

O túmulo da mulher é o mais antigo de três encontrados no sítio arqueológico de Newen Antug, no extremo norte da região hoje conhecida como Patagónia, escavado entre 2012 e 2015. Os Mapuche viveram na região desde pelo menos 600 a.C..

A datação por radiocarbono indica que a mulher foi enterrada há mais de 850 anos, possivelmente há mil anos. O género e idade no momento da morte – entre 17 e 25 anos – foram determinados pelo estudo dos ossos pélvicos e do desgaste dos dentes.

Um jarro de cerâmica decorado com esmalte branco e padrões geométricos vermelhos, colocado no túmulo ao lado da sua cabeça, sugere uma conexão com a tradição pré-hispânica, seguida em ambos os lados da Cordilheira dos Andes, apontou a equipa.

Dada a idade e o clima húmido, a canoa funerária apodreceu, restando apenas fragmentos de madeira. Os testes sugerem que os fragmentos vieram da mesma árvore – um cedro chileno (Austrocedrus chilensis) -, esculpido com fogo.

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Escavação do sítio arqueológico de Newen Antug.

As conchas encontradas no túmulo mostram que o corpo foi colocado diretamente numa cama feita de Diplodon chilensis, um tipo de molusco de água doce que terá sido recolhido nas margens do Lago Lácar, a mais de 300 metros de distância, referiram os investigadores.

Além disso, a posição do corpo – os braços juntos ao tronco e a cabeça e os pés levantados – indicam que a mulher foi enterrada dentro de uma estrutura côncava, com paredes mais grossas nas extremidades, que correspondem à proa e à popa de uma canoa, continuou Perez.

Em conjunto, estas evidências sugerem um funeral segundo a crença Mapuche, na qual a alma deve fazer uma viagem final de barco antes de chegar à terra dos mortos.

Nessa crença, o destino das almas era “Nomelafken” – uma palavra na língua Mapuche que se traduz como “outro lado do mar” – e os mortos faziam uma viagem de barco metafórica por até quatro anos até chegarem a uma ilha mítica chamada Külchemapu ou Külchemaiwe.

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Plano de escavação do local.

Um relato da década de 1840 do político chileno Salvador Sanfuentes revelou que a população local “colocava as sepulturas dos seus mortos na margem de um córrego, permitindo que a corrente levasse a sua alma para a terra das almas”, com as canoas cerimoniais a serem utilizadas como caixões para carregar os defuntos na jornada.

“Constatámos que esta era uma prática generalizada no continente, embora seja pouco conhecida na arqueologia devido a problemas de conservação”, como o que ocorre com a madeira em climas húmidos, disse Perez. “A antiguidade dessas práticas é incerta, mas sabemos que esse método de navegação foi usado há mais de 3.500 anos, então podemos estimar essa data como um possível limite de tempo”.

Estas descobertas “são de uma preservação excecional para o ambiente húmido da região, onde rios e lagos moldam a paisagem num sistema interconectado, que facilitou e incentivou a navegação”, disse Nicolás Lira, professor de arqueologia, etnografia e pré-história da Universidade do Chile, que não participou da pesquisa.

Registos históricos e etnográficos sugerem que esse tipo de funeral representava uma relação simbólica entre o povo Mapuche e os corpos de água, mas essa não é a única consideração. As árvores “fazem parte de quase todos os aspetos da vida quotidiana dos Mapuche”, declarou Juan Skewes, antropólogo da Universidade Alberto Hurtado, no Chile, que não participou do estudo.

Taísa Pagno //

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