A atriz, declamadora e pedagoga de 98 anos, que levou a “Ode Marítima” de Álvaro de Campos para cena, em 1959, morreu na segunda-feira à noite, em Lisboa, disse à Lusa fonte da família.
Germana Tânger, atriz, encenadora, declamadora, destacou-se na divulgação da poesia e na arte de a dizer, que lecionou durante 25 anos no Conservatório Nacional.
Nasceu em Lisboa, em 16 de janeiro de 1920, estudou no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo feito parte do respetivo grupo de teatro, fundado por Manuel Tânger, investigador, professor universitário, com quem viria a casar-se.
A declamação da poesia portuguesa começou cedo, por sugestão de Almada Negreiros, que lhe pediu que dissesse “O Corvo”, de Edgar Alan Poe, traduzido por Fernando Pessoa, numa sessão pública.
“A aprovação foi imediata”, escreveu António Macieira Coelho, amigo da declamadora, no prefácio de “Vidas numa vida”, a autobiografia que Germana Tânger publicou em 2016, recordando que aquele instante e aquele poema constituíram o “arranque imparável para a arte de dizer poesia”, que perduraria durante décadas.
No final da década de 1940, Germana Tânger fixou-se com o marido, em Paris. Fez um curso de dicção no Teatro Jean Vilar, estudou com George Le Roy, ator da Comédie Française e professor do Conservatório de Paris, foi titular de Estudos Camonianos, na Universidade de Sorbonne.
Firmou a carreira de declamadora no Brasil, após a colocação do Manuel Tânger no Rio de Janeiro, como adido cultural. Privou com os meios literários da época, fez amizade com a escritora Cecília Meireles.
Regressou a Portugal na década de 1950, altura em que começou a dar “Arte de Dicção” no Conservatório Nacional de Lisboa.
Iniciou então os programas culturais da RTP e na antiga Emissora Nacional/Radiodifusão Portuguesa (RDP), nomeadamente “Ronda Poética”, assim como os recitais “Pró Arte”, que levaria a todo o território português e a instituições ligadas ao ensino da Língua e da Cultura portuguesas, no estrangeiro, e às comunidades portuguesas.
Privou com a artista Sarah Afonso, a escritora Fernanda de Castro e a poeta Natália Correia, partilhando tertúlias e o gosto pela palavra, pela poesia portuguesa e pelos seus autores.
Em 1959, ousou dizer pela primeira vez, “na íntegra e de cor”, a “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos, num espetáculo público, no Teatro da Trindade, em Lisboa, exatamente o mesmo local onde se despediu dos palcos, em 1999, repetindo o poema do heterónimo de Fernando Pessoa a quem ficaria sempre associada, acompanhada pelo ator João Grosso (“o meu querido João Grosso”, escreveu), um dos seus diletos discípulos.
Foi homenageada pelo Festival de Teatro de Almada, e a revista Phala, dirigida pelo editor Manuel Hermínio Monteiro, da Assírio & Alvim, dedicou-lhe então um número especial, com uma seleção dos ‘seus’ poemas, como a “Ode Marírima”, de Álvaro de Campos.
Cinco anos depois, em 2004, esta editora convidou-a para fazer um audiolivro, com autores à sua escolha. Gravou Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.
Em 2010, quando Germana Tânger completou 90 anos, foi homenageada pelo Festival ao Largo, do Teatro Nacional São Carlos. Três anos mais tarde, o Nacional D. Maria II assinalou o Dia Mundial da Poesia com a celebração da sua carreira e a inscrição do seu nome, numa placa junto ao Salão Nobre.
A apresentação da sua autobiografia, “Vidas numa vida”, em abril de 2016, em Lisboa, foi um dos últimos atos públicos em que participou.
No prefácio da obra, António Macieira Coelho escreveu: “Passada a década dos noventa, com o vigor mental que sempre a conduziu e a memória espantosa a transformar tudo em tempo presente, contempla-nos com a longa história da sua vida, desdobrada saborosamente por muitas vidas, escrita com doçura e simplicidade”.
Germana Tânger foi agraciada com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, pelo Presidente da República Jorge Sampaio, com a Medalha de Mérito da Câmara de Lisboa, a Medalha de Mérito de Sintra e ainda com o Prémio Maria Isabel Barreno – Mulheres Criadoras de Cultura do Governo português, entre outras distinções.
No final da autobiografia, escreveu: “Por último, assim resumo a minha vida”, “tanta surpresa, tanta dedicação, tanto amor, tanta amizade, tanta desilusão, tanta força, tanta alegria, tanta esperança, tanta rebeldia, tanto desgosto, tanta saudade”.
“Aos que vivem com a maldade que anda no ar e bem recheada de mentira, de injustiça e de rancor, este livro não lhes diz respeito. À alma dos que me construíram e dos grandes amigos que me cercam com a verdade, a justiça, a força da vida e, sobretudo, com o amor, sim, a esses dedico este livro”.
// Lusa