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Molécula descoberta no Brasil pode salvar o diabo-da-tasmânia da extinção

mathiasappel / Flickr

Uma forma contagiosa e transmissível ‘parasitária’ de cancro pode extinguir o diabo-da-tasmânia nas próximas décadas

Uma molécula descoberta numa aranha no Brasil poderá salvar da extinção um mamífero que vive do outro lado planeta. Batizada de gomesina, foi encontrada na aranha-caranguejeira Acanthoscurria gomesiana.

Investigadores australianos estão agora a testar a ação da gomesina no combate a um tipo de cancro que está a dizimar a população do diabo-da-tasmânia, marsupial que só vive na ilha que lhe dá o nome, localizada a 240 quilómetros da costa sudeste da Austrália.

O diabo-da-tasmânia, ou Sarcophilus harrisii, é o maior marsupial carnívoro do mundo. Há 3 mil anos, vivia também na parte continental da Austrália, mas hoje o seu habitat restringe-se à ilha da Tasmânia, um Estado australiano no qual corre um sério risco de extinção, por causa de uma forma contagiosa e transmissível “parasitária” de cancro conhecida como doença do tumor facial do diabo-da-tasmânia (TFDT).

Desde que surgiu, em 1996, cerca de 80% destes animais foram mortos. Se nada for feito, os cientistas estimam que a espécie será extinta dentro dos próximos 15 a 25 anos.

Segundo o biólogo Pedro Ismael da Silva Júnior, investigador do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantan, que descobriu a gomesina, a doença  caracteriza-se por feridas na face, principalmente na boca e no nariz.

As feridas vão aumentando e espalhando-se, destruindo os rostos dos animais e impedindo-os de comer, causando a morte por inanição”, explica. “O cancro espalha-se rapidamente e está presente em 65% da ilha da Tasmânia. A cura do tumor pode salvar esta espécie da extinção.”

Molécula sintética

Um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Queeensland, em Brisbane, na Austrália, está a testar uma molécula sintética desenvolvida e patenteada por Silva Júnior a partir da proteína da A. gomesiana, e um peptídeo semelhante, encontrado na aranha da espécie Hadronyche infensa, que vive naquele país.

Os cientistas demonstraram que, em laboratório, a gomesina interfere no ciclo das células cancerosas, modificando a produção de várias moléculas. Isto torna as células inviáveis, matando-as. O processo foi descrito num artigo publicado este ano na Cell Death Discovery, do grupo Nature.

No entanto, nada disto seria possível sem a descoberta de Silva Júnior. O cientista conta que sempre trabalhou com aranhas, centrando o estudo nos seus pelos urticantes. Contudo, quando foi fazer o mestrado, o seu orientador morreu e precisou substituí-lo.

Pedro Ismael da Silva Júnior descobriu a gomesina

“A minha nova orientadora, Sirlei Daffre, propôs que passássemos a pesquisar o sistema imune de aracnídeos em busca de peptídeos antimicrobianos”, lembra. “Eu concordei e começamos a procurar moléculas bioativas no sangue das aranhas.”

Durante o trabalho, que se estendeu de 1994 a 2000, o investigador encontrou várias moléculas, uma das quais muito potente e promissora. “Demos o nome de gomesina, em homenagem à aranha-caranguejeira Acanthoscurria gomesiana“, conta.

“A importância é que uma descoberta brasileira, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e com registo pelo escritório de patentes da Universidade de São Paulo, está a ser utilizada por investigadores australianos para salvar da extinção um organismo vivo e único da região.”

Novos antibióticos

Silva Júnior também explica por que se dedicou a verificar a presença de moléculas com atividade antibiótica no sangue (hemolinfa) dos aracnídeos. “Estes organismos vivem na Terra há mais de 450 milhões de anos e os registos fósseis, principalmente no âmbar, mostram qu mudaram muito pouco no curso da evolução”, diz.

“Então, por viverem em ambientes contaminados e não mudarem muito durante a evolução é que nos despertou a curiosidade de como esses animais se defendiam.”

Os estudos de Silva Júnior demonstraram ainda que esta molécula também está presente em outros aracnídeos. “Essa informação, bem como a sequência de resíduos de aminoácidos da gomesina, foi compartilhada por meio de publicações científicas, com acesso permitido a todos os cientistas do mundo”, explica.

“Na Austrália, os investigadores verificaram a presença dessa molécula numa aranha-caranguejeira. Utilizaram tanto a proteína encontrada nessa espécie como a descoberta brasileira (sintetizaram usando a sequência de resíduos de aminoácidos disponível no banco de dados) para avaliar a sua atividade contra o tipo de cancro que está a levar à extinção o diabo-da-tasmânia.”

Avanço médico

Mas não é só para tratar o cancro do diabo-da-tasmânia que a gomesina poderá ser empregada. Devido à sua atividade contra bactérias, fungos e vírus, a gomesina pode também ser usada para o desenvolvimento de novos antibióticos, mais potentes do que os atuais.

Nesse caso, poderia ser empregada no combate das várias espécies de bactérias resistentes aos fármacos atuais. Mas é provável que um novo medicamento a partir dessa proteína seja desenvolvido primeiro noutro país.

“Temos a patente e já tentamos torná-la num produto, mas não conseguimos“, lamenta Silva Júnior. “É muito difícil o desenvolvimento de um fármaco no Brasil.”

O investigador esclarece que não tem nenhum trabalho em conjunto ou colaboração direta com o grupo australiano. “A partir das nossas descobertas, o grupo australiano foi capaz de avaliar uma molécula contra esse tipo de cancro e verificar a sua funcionalidade“, diz. “Temos inúmeras publicações que mostram as diversas atividades da gomesina, inclusive a antitumoral. Cada cientista que descobre alguma coisa ajuda os investigadores do futuro.”

O especialista ressalta ainda que não há competição. “São grupos que trabalham em prol do combate às doenças, cada um dando sua contribuição e caminhando cada vez mais para frente”, explica.

Não sou movido por vaidades. Espero realmente que um dia possamos desfrutar de um medicamento que possa resolver os nossos problemas de saúde. Fruto da associação de todos os investigadores do mundo. Que estejamos acima das pobres políticas de ciência e saúde dos nossos países.”

ZAP // Ciberia / BBC

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