Mentir a si próprio. Mentir tanto que, para a própria pessoa, passa a ser verdade. Algo que acontece abaixo do nível de consciência e é difícil combater.
Os Guano Apes começaram a cantar, há mais de 20 anos, que viviam numa mentira.
Não é só na música. Há mesmo pessoas que vivem numa mentira. Que, para elas, é verdade.
O julgamento mais mediático dos últimos anos, entre Amber Heard e Johnny Depp, terminou com Heard considerada culpada por difamar Depp.
Mas as sessões fizeram recordar/repetir a pergunta em muitas casas: alguém está (ou ambos estão) a mentir, e sabe que está a mentir, mas continua a dizer aquelas coisas…porquê? Mesmo em tribunal, mesmo em frente a milhões de pessoas que vêem pela televisão, mentem.
Não é só no tribunal. Sim, muitas pessoas mentem. Mas, para as pessoas em causa, podem nem ser mentiras. Podem estar convencidas de que é mesmo verdade. Contaram a si próprias as mentiras, inúmeras vezes.
Ou então encontram sempre justificação para as falsidades que dizem, ou acham que a verdade nunca será descoberta.
Mentir a si próprio mantém uma imagem protegida, a consciência fica limpa. E os outros acabam por acreditar também.
Enganar-se a si próprio é comum, avisa a BBC, que deixa cinco factores que podem explicar este fenómeno global.
O primeiro é a protecção do ego. Há pessoas que se podem estar a enganar a si próprias de forma inconsciente, para alimentar o seu ego. Colocam-se acima do seu patamar real, “acham-se” mais do que aquilo que são. Normalmente isto está associado ao contexto familiar-educacional, ou social (como quase tudo).
O segundo motivo é a sinceridade moral. Exemplo: a pessoa mente a si própria para justificar eventuais conflitos de interesse no trabalho. Mais uma vez, de forma inconsciente, deturpa interiormente os factos, a realidade, para ser beneficiada nesses momentos – quando ela própria acredita que está a zelar pelo interesse do outro lado da questão. É a tal imagem que fica protegida. Continua a dizer: “Sou boa pessoa”.
Convencer a si próprio e aos outros é também uma possível explicação. É a frase que conhecemos há muito tempo: uma mentira dita tantas vezes… Até a confiança da pessoa vai crescendo, conforme o número de relatos da mentira vai aumentando. A certa altura, passa a ser verdade – para ela e para os outros.
Esta questão também envolve escolher lados. Pode ser aplicado na política, no contexto laboral, ou até numa conversa entre amigos. A pessoa pode nem acreditar no que vai ser defendido, mas se “dá jeito”, ou se o seu emprego “obriga” a apoiar determinado lado no debate, para si aquilo passa a ser verdade.
O último factor são os delírios de grandeza. Está um pouco relacionado com a alimentação do ego. Enganar a si próprio pode permitir que acreditemos que somos melhores do que realmente somos. Somos mais inteligentes do que os outros todos. Para nós, somos. Porque o que dizemos e aquilo em que acreditamos não é mentira – passou a ser verdade
Há outro possível factor, não mencionado pela BBC: o transtorno de borderline, já classificado como “a doença deste século”. Entre muitos outros sintomas, a percepção da sua imagem e da sua própria identidade é distante da realidade e é muito complexa. Há casos de pessoas que, além de mentirem, “usam” outras pessoas para se sentirem superiores (e muitas vezes para não se sentirem abandonadas); e chegam ao fim da história com uma auto-consciência de que nada fizeram errado, de que sempre disseram a verdade. Os outros é que são “burros”.
Não é só na música:
Sócrates?