Ex-procurador-geral deu “carta para sair da prisão” a Trump ao não o acusar de obstruir a justiça

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Donald Trump, ex-Presidente dos Estados Unidos

A divulgação de um memorando de 2019 do Departamento de Justiça está novamente a levantar questões sobre a idoneidade de Bill Barr, o então procurador-geral que decidiu não acusar Trump de obstrução de justiça nas investigações à interferência russa nas presidenciais de 2016.

Mais um dia, mais um escândalo em torno da administração Trump. Desta vez, a divulgação de um memorando do Departamento de Justiça datado de 2019 está a levantar questões sobre o trabalho do então procurador-geral, Bill Barr.

O memorando de nove páginas foi divulgado esta quarta-feira como parte do processo sobre os registos públicos ligados à investigação que deu origem ao polémico relatório do procurador especial Robert Mueller.

Uma versão rasurada do documento já tinha sido publicada em 2021, mas um tribunal federal ordenou agora ao Departamento de Justiça que o divulgasse na íntegra. O memorando contém uma análise legal feita por dois altos funcionários do Departamento e que foi entregue a Barr.

Dois tribunais federais já concluíram que o então procurador-geral não se baseou no documento para a sua decisão, já que os juízes consideram que Barr nunca pensou seriamente em acusar Trump de obstrução de justiça e já tinha tomado essa decisão antes de ter recebido o memorando em causa.

O conteúdo do memorando

No documento, dois altos cargos do Departamento de Justiça escrevem que Mueller não conseguiu comprovar que Trump interferiu nas investigações ao envolvimento da Rússia nas eleições presidenciais de 2016, isto apesar de ter despedido o então director do FBI, James Comey.

Steven Engel e Ed O’Callaghan, os dois autores do memorando, dizem ainda que o possível perdão presidencial de Trump a uma das principais testemunhas da investigação, Paul Manafort, não podia ser vista como uma forma de comprar o seu silêncio no caso.

Os procuradores recordam a conversa entre Trump e Comey em 2017, quando o então chefe de Estado pediu do líder do FBI que parasse de investigar Michael Flynn — o general e conselheiro de Trump que terá pedido ao embaixador russo nos EUA, em Dezembro de 2016, que Moscovo esperasse pela tomada de posse de Trump em 2017 para responder à expulsão dos diplomatas russos ordenada pela administração de Barack Obama.

De acordo com o documento, esta conversa entre Trump a Comey não foi passou da “manifestação de uma esperança” do ex-Presidente e “não se dirigiu claramente a uma acção concreta da investigação a Flynn”. Os funcionários consideram ainda que Comey não agiu “como se tivesse sido ordenado directamento pelo Presidente”.

Os membros do Departamento argumentam ainda que Trump não deve ser acusado por não haver um precedente legal semelhante e desvalorizam as conclusões do relatório de Mueller.

“Em todos os casos de obstrução bem-sucedidos citados no relatório, os actos de corrupção foram levados a cabo para prevenir a investigação e a acusação por um crime separado”, defendem.

Há apenas uma instância em que os funcionários admitem que Trump pode ter interferido na investigação — quando ordenou a Don McGahn, um conselheiro seu, que escrevesse um memorando onde explicasse que nunca tentou despedir Mueller, apesar de alegadamente lhe ter dito que “Mueller tem que ir embora“.

Mesmo quando consideram que é muito provável que Trump soubesse que isso não era verdade, os autores do documento afirmam que as provas são “insuficientes para se concluir para além de uma dúvida razoável que o Presidente tentou induzir McGahn a mentir”.

O documento termina com uma recomendação formal dos procuradores para que Trump não seja acusado de obstrução de justiça, tendo Barr concordado com o veredicto e assinado por baixo a 24 de Março de 2019 — a mesma data em que notificou o Congresso da sua decisão, lembra a CNN.

A decisão de Barr foi muito criticada na altura, tendo o procurador-geral sido acusado por analistas legais e pelo próprio Mueller de ignorar a maior parte das conclusões do seu relatório.

Barr era o “advogado de defesa” de Trump

A divulgação do memorando está a causar um reboliço no mundo legal e vários analistas mostram-se chocados com a conduta parcial de Barr.

De acordo com o antigo procurador federal Samuel Buell, o memorando “parece mais a um relatório feito por um advogado de defesa do que a uma análise profunda e equilibrada com base nas autoridades legais”, diz ao The New York Times.

Ryan Goodman, professor de Direito da Universidade de Nova Iorque, partilha da mesma opinião. “É difícil engolir um documento que se resume, no fundo, a dizer que alguém não é culpado de obstrução mesmo quando tenta deliberadamente induzir testemunhas a não colaborar com as forças de segurança”, declara, comparando o memorando à “carta para sair da prisão” do jogo de tabuleiro Monopólio.

A organização sem fins lucrativos Cidadãos em Defesa da Responsabilidade e da Ética em Washington, que pediu ao tribunal que ordenasse a publicação na íntegra do memorando, já reagiu à notícia num comunicado, considerando que o documento “reflecte uma visão muito generosa da lei e dos factos para Donald Trump”.

“Distorce os factos e a lei de forma significativa em benefício de Donald Trump, e não faz uma leitura séria das leis de obstrução da Justiça nem dos factos que foram descobertos pelo procurador especial Mueller”, atira o grupo.

A divulgação do memorando vem na mesma altura em que o Departamento de Justiça, agora chefiado por Merrick Garland, está novamente a investigar Trump por alegadamente ter obstruído a justiça — desta vez na investigação sobre a sua responsabilidade (ou falta dela) quando levou documentos confidenciais do Governo para a sua casa na Flórida, o que originou a busca sem precedentes do FBI.

Adriana Peixoto, ZAP //

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