Ermelinda Duarte foi uma voz muito (mesmo muito) ouvida no pós-revolução. Depois passou a ser muito (mesmo muito) ouvida na “bonecada”.
Ontem apenas
Fomos a voz sufocada
De um povo a dizer: “Não quero”
Era uma jovem e bela actriz em 1974, com uma carreira iniciada meia dúzia de anos antes.
Passou pelo cinema, no filme ‘Pedro Só’ e em telefilmes, mas, no teatro, tinha-se estreado em palco através do Teatro Estúdio de Lisboa, sempre com encenação de Luzia Maria Martins.
Foi precisamente o Teatro Estúdio de Lisboa que apresentou a peça ‘Lisboa 72/74’, estreada já depois do 25 de Abril de 1974, mais precisamente em Setembro desse ano.
Uma das suas actrizes era Ermelinda Duarte. A jovem era também cantora e autora de canções. A cantautora criou ‘Somos livres’, melodia que foi inserida nessa peça.
Ontem apenas
Fomos um povo a chorar
Na sarjeta dos que, à força,
Ultrajaram e venderam
Esta terra hoje nossa
Mas ‘Somos livres’ tornou-se muito mais do que uma música que fazia parte de uma peça de teatro.
Como conta a RTP, Mário Martins – da editora Valentim de Carvalho – sentiu que aquela música tinha potencial se fosse gravada e vendida como single, ou no interior de um disco.
Ermelinda não aceitou logo. O produtor insistiu. O single saiu mesmo. E foi um grande sucesso.
Uma gaivota voava, voava
Asas de vento, coração de mar
‘Somos livres’, ou para muitos “Uma gaivota voava, voava” – com ou sem trocadilhos – passou a ser cantarolada por todo o país naquele novo Portugal, pós-25 de Abril.
Todos queriam cantar, e repetir, e gritar:
Como ela, somos livres
Somos livres de voar
Os pais, aliviados e felizes, talvez até com uma lágrima no olho, sorriam ao pensar no futuro:
Uma criança dizia, dizia
Quando for grande, não vou combater
A própria Ermelinda Duarte resumiu, já em 1975: “A peça acabou e ‘Somos livres’ continuou. Passou para a rua. Foi cantada e é cantada pelos ceguinhos, por crianças nas escolas e nas ruas, eu ouvi-a cantada em manifestações… E creio que é a melhor coisa que pode acontecer a uma canção: é ir de facto para a rua“.
Já praticamente ninguém associava a música àquela peça que foi estreada no Teatro Vasco Santana.
Mais do que singles musicais ou participação por exemplo na série Retalhos da Vida de um Médico, focou-se depois no mundo das dobragens de séries e filmes infantis.
Deu voz a personagens de Abelha Maia, As Aventuras de Tom Sawyer, A Bela e o Monstro ou A Idade do Gelo 2, entre outras dezenas de exemplos. Dirigiu a equipa de dobragens em dois filmes de Harry Potter, ou nos Simpsons, por exemplo.
A sua voz única passou assim a fazer parte da memória – e da história – de diversas gerações em Portugal.
Ainda hoje faz parte: se espreitar desenhos animados que passam na RTP2 diariamente, espreite a ficha técnica e vai ver muitos exemplos destes:
Reprodução / RTP

Ficha técnica de ‘Numberblocks’
Sim, é a mesma. Aos 78 anos, Ermelinda Duarte continua a ser responsável pela tradução e pela direcção de dobragens de diversas séries infantis.
São uma voz e uma presença “eternas”. E livres.
Somos livres, somos livres
Não voltaremos atrás
Somos livres, somos livres
Não voltaremos atrás
Uma gaivota voava, voava, filha da…, nunca se mais cansava.