Neste 18º Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio, o ZAP falou com Mafalda Pedra Soares, vice-presidente da Associação Voz Amiga, sobre o impacto da pandemia na saúde mental e o papel das instituições de apoio voluntário.
Assinala-se hoje mais um Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio, mas para muita gente a dor não tem data marcada e prevalece todos os dias do ano. Em Portugal, suicidam-se três pessoas por dia, em média e segundo os dados do PorData, registaram-se 975 mortes por suicídio no país em 2019, menos 14 do que em 2018.
A nível demográfico, os homens continuam a ser as maiores vítimas do suicídio (74%), de acordo com os números de 2017 do Instituto Nacional de Estatística, ano em que se registaram 1061 mortes no país. No entanto, no mesmo período analisado pelo INE, o suicídio subiu 19% nas mulheres. A nível nacional a idade média foi 59 anos – 59,3 anos para os homens e 58,2 para as mulheres.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, mais de 700 mil pessoas suicidam-se todos os anos, o que corresponde a uma pessoa a cada 40 segundos. A OMS aponta que por cada adulto que conseguiu tirar a própria vida, outros 20 tentaram o suicídio. Em 2019, cerca de 77% dos suicídios aconteceram em países de baixo e médio rendimentos e esta foi a 17ª causa de morte mundial, o que equivale a 1,3% de todos os óbitos.
Mas há quem dedique o seu tempo a trazer alívio a quem está a sofrer e Mafalda Pedra Soares é uma dessas pessoas. Voluntária desde 2011, Mafalda é a vice-presidente da linha telefónica SOS Voz Amiga, que foi criada em 1978 e é a mais antiga linha de atendimento em Portugal para quem está a sofrer crises de saúde mental.
“Todas as pessoas que trabalham na associação SOS Voz Amiga, entre a direcção e voluntários que atendem o telefone, são voluntárias. As únicas excepções são as nossas técnicas de saúde mental, que são duas psicólogas que estão ao nosso serviço e que são remuneradas. Temos as nossas profissões e depois tiramos um bocado do nosso tempo para nos dedicar-mos a esta missão”, explica ao ZAP.
Muito se tem falado sobre o impacto da pandemia na saúde mental, com o aumento da ansiedade e da depressão resultantes do isolamento. A SOS Voz Amiga registou um aumento nos pedidos de ajuda – se a média de pedidos por mês antes da covid era de cerca de 600 e com apenas um voluntário por turno, desde o início de 2021 que têm “sempre batido as 1000 ou até 1200” chamadas mensais.
“Um dia não é nunca igual ao outro, nem as estações do ano são iguais às estações do ano anterior. O sofrimento não tem hora nem tem dia e nós não associamos a épocas como o Natal como épocas com maior intensidade de chamadas, mas podemos identificar a pandemia com um ritmo maior de chamadas”, explica Mafalda Pedra Soares, que realça que os voluntários conversam com os apelantes quanto tempo for necessário.
No entanto, apesar do aumento dos pedidos de ajuda com a pandemia, a associação notou também um grande acréscimo no número de voluntários. A vice-presidente explica que apesar de anteriormente trabalharem presencialmente, os voluntários conseguiram passar para o teletrabalho e não pararam de atender chamadas.
Malfada Pedra Soares acredita que “a pandemia em si veio criar um enorme interesse na sociedade por este trabalho”. “Tivemos uma entrada de voluntários a meio da pandemia que reforçou imensamente o grupo como nunca tinha acontecido. Nunca tivemos um grupo de 50 voluntários em atendimento, foi a pandemia que puxou pelo lado solidário das pessoas”, afirma, explicando que passaram de 25 para 52 membros.
Já o perfil dos voluntários é muito variado – entre homens e mulheres de todo o tipo de profissões e idades, estando muitos já reformados. Os candidatos precisam apenas de ter mais de 21 anos porque apesar de serem jovens, a Voz Amiga acredita que “podem ter uma história de vida que seja suficientemente sólida e vasta para que possam atender chamadas graves e exigentes”.
Dada a sensibilidade exigida aos voluntários que dão apoio a pessoas em crise, o processo de selecção é rigoroso. “Primeiro de tudo, à candidatura a partir do nosso site. Uma vez por ano ou a cada dois anos, fazemos uma sessão de informação em que os candidatos são convidados para uma sala onde lhes explicamos o modo de funcionamento do SOS Voz Amiga e aquilo que é pedido a quem vai estar em atendimento”, refere Mafalda ao ZAP.
Se depois da sessão, os candidatos continuarem interessados, segue-se uma “entrevista longa e intensa com uma psicóloga e um voluntário mais antigo” para saberem mais sobre o candidato e avaliarem o seu perfil. Supondo que haja 100 candidatos iniciais, nesta fase do processo já só há 40.
“Depois temos uma reunião sobre os candidatos entrevistados onde falamos seriamente sobre quem conhecemos e consoante a capacidade que a SOS Voz Amiga tem de acolher voluntários nesse ano, o que depende das condições em que estamos a trabalhar, que vemos o número de candidatos que podemos aceitar”, continua a voluntária.
Após a selecção, começa o processo de formação através de reuniões semanais – uma formação sem “manual de instruções com indicações de procedimentos típicos”.
“Nós temos formação contínua relativamente às emoções por que passamos quando estamos a atender os telefonemas. Somos formados para realizar chamadas em que existe contacto humano, em que se fala sobre emoções sem julgar e que criam uma relação pessoal, apesar do anonimato”, afirma Mafalda Pedra Soares.
A SOS Vos Amiga assume-se “a favor da vida, apartidária, sem ideologias e aberta a falar de assuntos difíceis como a morte e o suicídio”.
“O Estado não nos liga nenhuma”
É já a 9 de Outubro que a SOS Voz Amiga celebra 43 anos de existência, mas o caminho não foi sempre positivo e teve os seus percalços. Mafalda Pedra Soares explica que a “boa onda” vivida actualmente nem sempre se verificou e que em 2018 a associação quase deixou de existir por falta de financiamento, tendo perdido a sede onde trabalhava.
“Estávamos na iminência de festejar o nosso 40º aniversário na rua. Tivemos a sorte de dar uma entrevista a um jornal que foi lida por um alto quadro da Altice. Essa pessoa conseguiu o contacto do nosso presidente, o Francisco Paulino, e pô-lo a conversar com a administração da Altice, que nos deu todas as condições para trabalharmos”, recorda.
Apesar da importância do trabalho da associação, os temas pesados com que lida, como a depressão e o suicídio acabam por afastar os patrocínios. Para além da iniciativa privada, a associação depende também de donativos para sobreviver.
“Tivemos uma belíssima surpresa no ano passado quando o Agir lançou uma música cujos proveitos reverteram a nosso favor. O Facebook também fez uma campanha de recolha de fundos que reverteu a nosso favor e assegurou-nos quase um ano de actividade. Há também uma associação de farmacêuticos do Sul que nos apoia e algumas farmácias espalhadas também fazem recolhas de fundos para nós”, revela a vice-presidente.
A saúde mental é também uma questão de saúde pública, mas o Estado não tem dado a mão às associações que estão na linha da frente no combate ao suicídio. No período mais complicado a Voz amiga deixou apelos ao parlamento e à Câmara Municipal de Lisboa, mas foram em vão.
A associação recuperou, mas “não por causa do Estado, infelizmente”. “Se tivéssemos mais apoio do Estado, poderíamos chegar a mais pessoas e ser uma entidade ainda maior e com intervenção directa na vida das pessoas que se dirigem, por exemplo, ao Serviço Nacional de Saúde. Embora o SOS Voz Amiga esteja indicado no plano nacional de prevenção do suicídio, o Estado ainda não nos ligou muito, o que é pena, mas estamos abertos a ouvir propostas interessantes”, lamenta Mafalda Pedra Soares.
Nos últimos anos, a saúde mental tem sido um tema mais debatido e parece que aos poucos o estigma está a diminuir. Apesar dos homens serem as maiores vítimas do suicídio, a maior parte dos apelantes à SOS Voz Amiga há dez anos eram mulheres – mas esse paradigma tem mudado, um sinal da evolução dos tempos.
“O estigma continua, sem dúvida nenhuma, mas noto um aligeirar. Pode ser feito mais trabalho nos centros de saúde e nas escolas e universidades, com acções bem planeadas”, propõe a voluntária. A associação tem um protocolo com a Escola Superior de Comunicação Social que pretende acabar com os receios dos jovens que precisem de ajuda e realça a importância de haver “programas positivos sobre a saúde mental” nos media.
Este foco nos jovens ganha ainda mais relevância depois do relatório divulgado hoje pela Ordem dos Psicólogos chamado “Vamos Falar sobre o Suicídio” mostrar que esta é a segunda causa de morte entre os jovens em todo o mundo entre os 15 e os 34 anos.
Mafalda Pedra Soares termina com conselhos para quem estiver a sofrer com pensamentos suicidas ou depressão ou conheça alguém nessa situação. “Deve haver logo um profunda interesse nessa pessoa, que passa por observar o que está a correr mal na vida dela e escutá-la com muita atenção, ter paciência. O próximo passo e o mais importante é procurar ajuda profissional“, conclui.
Pode contactar a linha SOS Voz Amiga todos os dias através dos números 213 544 545, 912 802 669 e 963 524 660, entre as 15h30 e a 0h30 e em regime de total confidencialidade e anonimato.