O detox digital pode ser uma meta impossível

Em fevereiro de 2023, surgiu a notícia de que o CEO da empresa de software Salesforce, Marc Benioff, fez um “detox digital”: 10 dias livres de tecnologia num ‘resort’ na Polinésia Francesa.

Para um pequeno grupo de pessoas, afastar-se dos equipamentos é um sonho alcançável. Mas, para a maioria, é uma impossibilidade, ainda mais atualmente.

O detox digital exige que nos afastemos quase totalmente da tecnologia, fazendo uma pausa das telas, das redes sociais e das videoconferências durante diversos dias. A intenção é boa: reduzir o stress e a ansiedade e reconetar-se ao mundo físico. E, embora não haja benefícios cientificamente comprovados sobre a abstinência tecnológica, o detox digital é um objetivo cobiçado por muitas pessoas.

Mas esse desafio é muito mais difícil de realizar hoje do que em 2012, quando os investigadores usaram o termo pela primeira vez.

Naquela época, as telas já eram importantes, mesmo com as versões ainda incipientes das aplicações e das redes sociais. Tentar um detox digital em 2012 teria sido muito mais fácil que no momento atual.

Fazemos pagamentos com nossos telemóveis, trabalhamos em computadores e ‘tablets’ e mantemos relacionamentos através de aplicações. E, desde o início da pandemia, a conexão entre a vida e a tecnologia intensificou-se ainda mais.

A menos que nos refugiemos na vida selvagem, num lugar remoto, por alguns dias sem telemóvel, os especialistas afirmam que o detox digital não é mais viável para a maioria das pessoas.

“A tecnologia, agora, é parte de nós. Fazemos serviços bancários com a aplicação, lemos menus de restaurantes no telemóvel e até suamos com instrutores de exercício através da tela”, afirmou a consultora Emily Cherkin, de Seattle, nos Estados Unidos, especialista em gestão de tempo.

A tecnologia “está tão incorporada às nossas vidas que estamos condenados ao fracasso, se dissermos que iremos ficar sem telemóvel por uma semana”, afirmou.

À medida que as pessoas ficam cada vez mais dependentes da tecnologia, o detox digital não parece mais um objetivo razoável. Mas talvez exista uma solução mais realista, que reduza a nossa obsessão tecnológica, sem forçar a desconexão total.

Por mais tempo que as pessoas já passassem nos equipamentos antes da covid-19, a pandemia intensificou o tempo em frente às telas. As pessoas usaram mais os aparelhos durante os ‘lockdowns’. Mas esses hábitos não terminaram, mesmo agora que temos liberdade para sair de casa e socializar.

Um estudo de 2022, realizado pela Universidade de Leeds, no Reino Unido, demonstrou que 54% dos adultos britânicos usam telas com mais frequência do que faziam antes da pandemia.

A metade das pessoas analisadas ficava em frente às telas por 11 horas ou mais, todos os dias. E 51% passam mais tempo nas telas para diversão do que antes da pandemia, enquanto 27% aumentaram o uso no trabalho.

Este aumento do tempo de uso da tecnologia também alterou a forma como nos conectamos. Os principais relacionamentos ficaram mais digitalizados. Formamos comunidades em grupos do WhatsApp e substituímos os almoços em família duas vezes por mês por chamadas de vídeo semanais, por exemplo.

A covid-19 fez com que parte das nossas conexões mudassem para o mundo digital e muitas delas continuam a existir nesses ambientes oferecidos pela tecnologia, como chats em grupo e chamadas de vídeo.

O namoro online ficou mais comum e também cresceu durante a pandemia. Com isso, a tecnologia também tornou-se fundamental para fazer amigos. Dados da aplicação de encontros Bumble indicam que a sua função Bumble BFF, criada para as pessoas conhecerem novos amigos, teve um aumento de tráfego substancial desde 2020.

No final de 2021, quase 15% dos 42 milhões de utilizadores do Bumble já estavam a procura de amigos no BFF. Um ano antes, eram menos de 10% e, no final de 2022, os utilizadores homens aumentaram em mais 26%.

“Grande parte da tecnologia atual, para o bem ou para o mal, é uma forma de acessibilidade”, referiu o escritor Chris Dancy, que monitoriza a sua existência conectada com mais de 700 sensores, aparelhos e aplicações.

“Para muitas crianças, para muitos pais, para muitos parceiros, para muitos amigos – odeio dizer isso, mas eles esqueceram como se mantém relacionamentos sem ela”, indicou igualmente.

O detox digital completo pode ser impossível, mas existem formas de reduzir a obsessão pela tecnologia sem se desconectar totalmente. A mudança combinada para o trabalho e relacionamentos híbridos deixou a ideia tradicional de detox digital não só desatualizada, mas quase impossível.

O detox digital é promovido como uma panaceia de liberalização da ansiedade, que irá afastar as pessoas das telas que as distraem e reconectá-las ao momento presente. Mas, com a vida e as telas das pessoas cada vez mais indissociáveis, a ideia da desconexão pode trazer mais ansiedade se não puder ser alcançada.

“Eu não posso desligar a tecnologia. Ficamos nas telas por muitas razões diferentes”, afirmou Sina Joneidy, professor de administração digital da Universidade Teesside, no Reino Unido. Por isso, a sua abordagem é diferente. “Para mim, é mais questão de detox do ‘apego e desejo’ da tecnologia”, apontou.

Joneidy explicou que o “apego e desejo” estão relacionados a um conceito budista, segundo o qual as pessoas querem alguma coisa porque acreditam que aquilo lhes trará felicidade – mas, na verdade, é apenas uma injeção de dopamina.

Em vez de eliminar totalmente a tecnologia, Joneidy pratica a consciência digital. “Eu asseguro-me de que meu uso da tecnologia tem um propósito”, contou.

A consciência digital pode ser algo mais prático para algumas pessoas, em vez de um detox total: preocupar-se menos com o corte completo da tecnologia e concentrar-se no seu uso mais intencional.

Em vez de sermos seduzidos pelo rolar de telas sem pensar, Joneidy acredita que utilizadores com consciência digital podem melhorar as suas vidas com a tecnologia, em vez de sentirem-se presos a um aparelho.

Mesmo que as pessoas não consigam afastar-se totalmente das telas, os especialistas afirmam que prestar atenção aos padrões específicos de uso da tecnologia pode ajudar a fazer com que essa atividade tenha mais propósito.

“Comecei a usar diversas ferramentas de rastreamento diferentes no meu telemóvel”, afirmou a antropóloga Amber Case, de Oregon, nos Estados Unidos. Também recomenda abandonar o hábito usar o telemóvel nos intervalos da vida diária e sugere que pode ser útil deixá-lo noutro lugar quando não precisamos dele.

A especialista aconselha a descansar olhando para cima, permitindo-se fazer nada por um minuto.

Por fim, os especialistas afirmam que o objetivo não deve ser eliminar a tecnologia. As pessoas ainda precisam redigir textos e enviar e-mails, mas podem fazer isso sem a distração dos verdadeiros do conteúdo online. Dancy chama esta abordagem de “detox cinza”.

E não existe apenas uma forma. As técnicas incluem a instalação de aplicações ou ‘plugins’ para remover todas as referências das redes sociais ou até trocar de telefone com entes queridos, que poderão usar as suas telas como forma de conexão intencional entre si.

“Todo fim de semana, eu uso o telemóvel do meu marido e ele usa o meu”, contou. Eles respondem às mensagens e ouvem música na conta um do outro. “É uma forma de realmente mergulhar na vida do outro”, afirmou Dancy.

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