Derrocada em Mesão Frio: engenheira que assinou projeto nunca visitou obra

Dez anos depois, começou o julgamento de dois engenheiros. Deslizamento de terras foi “consequência direta” da falta de observação das “boas regras de construção”, diz Ministério Público.

Uma engenheira arguida no processo do deslize de terras em Mesão Frio, Guimarães, em 2013, disse esta terça-feira que apenas assinou, enquanto estagiária, os projetos de arquitetura e de especialidades do empreendimento — e nunca visitou as obras, acrescenta.

O julgamento começou esta terça-feira, mais de uma década depois da derrocada, no Tribunal Local Criminal de Guimarães, estando a engenheira civil e um engenheiro técnico acusados “pela prática do crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços”.

A arguida, agora com 48 anos, explicou que, em 2004, assinou os projetos de arquitetura e de especialidades — que abrangem, nomeadamente, os arranjos exteriores, a estabilidade, a rede de águas ou as águas pluviais —, do empreendimento relativo à construção de dez casas de habitação naquela freguesia do concelho de Guimarães.

O Ministério Público (MP) sustenta que, no contexto da construção de um empreendimento constituído por dez casas de habitação, o empreiteiro construiu, de 15 de Março de 2007 a 22 de Fevereiro de 2008, um aterro, “em conjunto com os arguidos, que não observara as boas regras de construção constantes de normas regulamentares aplicáveis a tal tipo de realização, nomeadamente as relativas à drenagem e à composição do solo”.

“Como consequência direta e necessária de tais vícios de construção”, em 2 de Abril de 2013 “os solos da obra, bem como o talude, deslizaram numa extensão de 60 metros e altura de 50 metros”, frisa o MP.

“Confiei no Sr. Júlio. Limitei-me a assinar os projetos”

A engenheira disse, perante o juiz, que à data era estagiária num gabinete de arquitetura, engenharia e topografia, acrescentando que “se limitou” a assinar os documentos que lhe foram entregues pelo então proprietário do gabinete, que era topógrafo.

“Confiei no senhor Júlio e assinei. Tinha uma declaração da Ordem [dos Engenheiros] como estagiária e podia assinar projetos. Limitei-me a assinar os projetos, porque o senhor Júlio era topógrafo e não os podia assinar”, explicou a arguida.

Questionada pelo juiz sobre se, tecnicamente, concordou com os projetos, a engenheira respondeu “que estava a começar” a carreira, dizendo que “olhou” para os mesmos, reiterando que confiou no então seu chefe.

A arguida, que está a ser julgada juntamente com outro engenheiro civil, à data diretor de obra, assumiu também que “nunca” visitou as obras.

Nos autos estão projetos assinados pela arguida em 2004 — o de arquitetura — e em 2006, os de especialidades, quase dois anos após o início do estágio que, segundo a própria, seria de um ano.

A engenheira indicou ao tribunal que nesses quase dois anos esteve sempre como estagiária, de acordo com a declaração que tinha da Ordem dos Engenheiros que, disse, nunca alterou essa situação.

Solo era “muito fraco”

Na parte da tarde foi ainda ouvido o professor de engenharia civil da Universidade do Minho que liderou a equipa que elaborou um estudo pedido pela Câmara de Guimarães, logo após a derrocada, para se apurar as causas do deslizamento de terras.

O perito foi claro em afirmar que teria sido de “bom senso” ter realizado um estudo geotécnico, para se perceber as propriedades do solo e para se projectar as fundações necessárias, “e evitar situações” como a que aconteceu em 2 de Abril de 2013.

A equipa concluiu que o solo era “muito fraco”, com resíduos, envolvendo um aterro, que, com a água, “diminuía a capacidade de resistência à carga”. O perito deu ainda conta da existência de uma linha de água, que estava na carta militar, mas que nunca foi detetada pelos responsáveis pela obra.

Na sequência da derrocada, na variante à Estrada Nacional 201 (EN201) ficaram depositados 12.000 metros cúbicos de terra e lama e a estrada que liga Guimarães ao concelho vizinho de Fafe, esteve cortada durante mais de duas semanas. As dez habitações ficaram “descalças” e os respetivos moradores impedidos de lá entrar durante oito meses.

Em Junho de 2019, o Ministério Público acusou a empresa responsável pela construção das dez vivendas, os dois sócios-gerentes e os dois engenheiros. Os arguidos requereram a abertura de instrução e, em Fevereiro de 2022, o Tribunal de Instrução Criminal de Guimarães (TIC) decidiu não levar a julgamento nenhum dos quatro arguidos.

O MP interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, em 21 de Novembro de 2022, reverteu a decisão, porém só quanto aos dois engenheiros.

ZAP // Lusa

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