De muletas a croissants: os bens que Israel não deixa entrar em Gaza

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Mohammed Saber/EPA

Palestiniano carrega os seus bens a fugir de operação israelita no campo de refugiados de Al Nusairat, Gaza.

Comida de animais, frutos com caroço, brinquedos e equipamentos médicos e de higiene são apenas alguns exemplos. Até os croissants de chocolate são considerados alimentos de luxo inadequados para uma zona de guerra.

Gaza está a ser bombardeada por Israel há mais de meio ano e a fome e a doença também invadiram a Faixa.

Embora Israel insista que tem aumentado progressivamente o número de camiões de ajuda humanitária que entram no enclave, o Conselho de Segurança da ONU continua a pedir o fim “imediato” de entraves à ajuda. O último pedido foi emitido ainda esta quinta-feira: os 15 Estados-membros do Conselho manifestam “profunda preocupação” com a situação humanitária “catastrófica”.

Esta sexta-feira, as Forças armadas de Israel garantem que, a norte, já entraram os primeiros camiões de ajuda, pela “Travessia do Norte”. Os camiões, garantem os israelitas, continuam a ser “minuciosamente inspecionados” na fronteira — e muitos bens completamente inocentes ainda são confiscados, ao fim de seis meses de guerra.

As autoridades israelitas continuam a negar o acesso dos palestinianos a bens essenciais como material médico, mas também a pequenos, mas importantes itens na vida das pessoas, como brinquedos e até croissants de chocolate, segundo uma investigação do jornal The Washington Post.

Este tipo de restrições “é algo sem precedentes” com o qual as agências de ajuda humanitária “nunca tiveram de lidar”, afirma a porta-voz do Conselho Norueguês para os Refugiados nos territórios palestinianos Shaina Low. O mais chocante é que, durante a inspeção de um camião humanitário na fronteira, basta um item ser rejeitado entre milhares de bens para enviar todo o camião para trás, negando a entrada de uma série de bens essenciais e não proibidos na Faixa.

Jamie McGoldrick, coordenador humanitário da ONU para os territórios palestinianos ocupados, expõe uma situação do mês passado em que um camião de carga mista foi rejeitado por levar painéis solares. No mesmo camião seguiam importantes canetas de insulina, que só por causa dos painéis não puderam entrar em Gaza.

De acordo com o jornal, é longa a lista de artigos proibidos. Israel não dá hipótese a artigos sanitários e equipamentos de comunicação, entre outros. Também não parece haver grande critério: dentro da mesma gama de artigos, alguns passam, outros não. Se a entrada do artigo for realmente importante, as agências apresentam recursos, mas muitas vezes esses pedidos ficam no limbo.

Eis a lista de artigos que Israel impediu de entrar em Gaza desde a retaliação, de acordo com a ONU:

  • anestésicos
  • alimentos para animais
  • cateteres cardíacos
  • kits de teste químico da qualidade da água
  • croissants de chocolate
  • muletas
  • caixas hospitalares de campanha
  • coletes à prova de bala e capacetes para trabalhadores humanitários
  • acessórios para reparação de condutas de água
  • geradores para hospitais
  • tendas verdes e sacos-cama
  • kits de maternidade
  • fio médico nos kits de saúde reprodutiva
  • tesouras médicas em kits de ajuda para crianças
  • kits de controlo microbiológico da água
  • unidades móveis de dessalinização com sistema solar e geradores
  • corta-unhas em kits de higiene
  • pinças obstétricas
  • concentradores de oxigénio
  • garrafas de oxigénio
  • equipamento de alimentação elétrica
  • abrigos pré-fabricados
  • kits de comunicação por satélite
  • tesouras e bisturis em kits de obstetrícia
  • sacos-cama com fecho de correr
  • painéis solares
  • lâmpadas e lanternas alimentadas por energia solar
  • frigoríficos médicos alimentados por energia solar
  • peças sobresselentes para bombas e geradores
  • frutos de caroço
  • instrumentos cirúrgicos para médicos
  • kits de torneiras para distribuição de água
  • estacas para tendas
  • brinquedos em caixas de madeira
  • aparelhos de ultra-sons
  • ventiladores
  • bexigas de água
  • filtros de água e pastilhas de purificação
  • bombas de água
  • cadeiras de rodas, aparelhos de medição da glicose, seringas e outro
  • equipamento médico num camião rejeitado para um artigo diferente
  • máquinas de raios X

Camiões passam, mas Israel controla as rotas

As alegações são “falsas”, diz o Coordenador das Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT), a agência militar israelita responsável pela coordenação da ajuda humanitária em Gaza, que culpa a falta de organização das agências de ajuda humanitária. “Têm de aumentar a logística e deixar de culpar Israel pelos seus próprios fracassos”, avisou, sob a premissa de que menos de 1,5% do total de camiões humanitários foram impedidos de passar a fronteira de Rafah no Egito, uma das principais passagens de ajuda.

E a agência israelita apresenta mais números: 22.105 camiões foram autorizados a entrar em Gaza desde 7 de outubro, cerca de 118 camiões por dia, em média. No entanto, a ONU explica como os camiões são manipulados pelas IDF.

A principal agência humanitária afirma que Israel controla o momento após a entrada dos camiões, e é aí que alegadamente retiram as mercadorias, já do lado de Gaza, algo que é impulsionado pelo facto de Israel ter de aprovar as rotas que os camiões seguem dentro do enclave.

Processo de seleção “totalmente arbitrário”

Aliás, o bloqueio apertado acontece desde 2007, altura em que Israel adotou uma política de regulação da entrada de artigos de “dupla utilização” na Faixa de Gaza. Por “dupla utilização” quer-se dizer artigos de natureza civil que podem ser alterados para serem usados militarmente e alimentar o aparelho militar do Hamas.

A “lista negra” de artigos de dupla utilização abrange todo o tipo de bens: “fica difícil saber o que está ou não na lista”, disse ao Post Miriam Marmur, diretora de defesa pública do grupo israelita de direitos humanos Gisha.

Agora, os funcionários que apoiam os palestinianos veem-se forçados a questionar de que forma é que um croissant de chocolate pode vir a ajudar a máquina de guerra do movimento islamita que atacou Israel a 7 de outubro. Disseram os israelitas no mês passado a um funcionário norte-americano que são alimentos de luxo inadequados em zona de guerra. É um processo de seleção “totalmente arbitrário”, diz o senador Chris Van Hollen, que visitou Rafah em janeiro: “Não há qualquer justificação racional”.

Tomás Guimarães, ZAP //

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