Estela Silva / Lusa

Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro, num encontro no âmbito das Comemorações do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em Genebra, na Suíça, 11 de junho de 2024
Camões é humorista que bem dispõe sem se ver. É punch (line) que dói e não se sente. É um descontentamento contente. É dor que de rir mais faz doer.
Ricardo Araújo Pereira intitula-o como “o maior humorista português”.
Não cabendo ao ZAP fazer atribuições, e muito menos avaliações, jogamos pelo seguro e chamamos-lhe, “apenas”, grande humorista.
E o ZAP não se refere ao RAP, até porque não era uma piada; refere-se mesmo ao poeta (também cómico) Luís Vaz de Camões.
Recentemente, no seu podcast Coisa Que Não Edifica Nem Destrói, Ricardo Araújo Pereira deu a conhecer aquilo que muitos, talvez, desconhecessem, mas que sempre esteve à vista de todos. Ou, pelo menos, dos que tiveram escolaridade obrigatória: Camões foi um “épico” burlesco.
Isto porque até na sua epopeia o ilustre poeta português escreveu comédia.
“Talvez a ideia de Camões humorista pareça, à primeira vista, estranha: seja pela imagem que temos do poeta, majestoso, coroado de louros; seja pela solenidade da poesia épica; ou pelo tom sofrido da poesia lírica”, introduziu Ricardo Araújo Pereira.
“Mas creio que há boas razões para alegar que o ‘príncipe dos poetas’ tinha uma inclinação humorística“, completou. Um dos exemplos que RAP leva ao ouvinte para sustentar a sua tese está, precisamente, n’Os Lusíadas.
Ricardo Araújo Pereira considera que o pináculo da comicidade camoniana é o “episódio de Fernão Veloso”, entre as estâncias 31 e 36, Canto V da epopeia, em que Vasco da Gama conta ao Rei de Melinde as façanhas dos portugueses.
Entre os grandes feitos e verdadeiros atos de valentia dos portugueses, no caminho marítimo até à índia, Vasco da Gama decide contar também a história de Fernão Veloso que se armou em valente e “embrenhou sozinho em território desconhecido na costa africana”, de forma solitária.
31«É Veloso no braço confiado
E, de arrogante, crê que vai seguro;
Mas, sendo um grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, com cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.
Vendo que a sua aventura estava a ‘dar para o torto’ – Um Etíope ousado se arremessa / A ele, por que não se lhe escapasse; / Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa / Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse – voltou para trás a fugir, alegando que tinha de proteger os seus companheiros:
35«Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
– «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro
É melhor de descer que de subir!»
– «Sim, é (responde o ousado aventureiro);
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»
Ricardo Araújo Pereira, ativo defensor de quem Camões era mesmo humorista, defende que “outro poeta talvez não intercalasse feitos gloriosos com um história destas, em que um dos heróis da história foge a correr de uma ameaça”. “Mas, para Camões, o episódio tem direito a figurar lado a lado com as maiores proezas“, acrescenta.
RAP insinua que o nosso Camões está à frente William Shakespeare, que só inventou o fanfarrão Falstaff 20 anos depois.
Ainda antes de Falstaff, Fernão Veloso já tinha inventado “uma capacidade falstaffiana para transformar a covardia em valentia; o medo em coragem; uma fuga assustada num gesto nobre e altruísta de proteger os companheiros”.
Mas até na lírica sofrida Camões brincava com as palavras, como exemplificou Ricardo Araújo Pereira: “Aquela cativa que me tem cativo; ou o poema em que Perdigão (…) perde a pena do voar, ganha a pena do tormento“.
Além disso, “parece inegável que Camões tinha uma paixão por antíteses. Há evidentemente qualquer coisa de humorístico numa ferida que dói e não se sente; ou em é um cuidar que se ganha em se perder“, demonstrou RAP.
No mesmo podcast, o especialista em Camões (e autor do livro “Camões – Vida e Obra”) Carlos Maria Bobone admite que o Poeta tem o dom de confundir o leitor, tendo escrito coisas que “não se sabe se são para rir ou para nos orgulhar”.
No final de dezembro, Ricardo Araújo Pereira foi o convidado do programa da RTP “1000 X Camões”, para apresentar a sua “tese” sobre o “Camões humorista”.
Mas esta ideia de que Camões foi um grande cómico não é exclusiva.
Em 2008, por exemplo, o então reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, Justino Mendes de Almeida (falecido em 2012) publicou um trabalho intitulado: “O Humor Camoniano – Aspectos psicológicos na poesia de Camões”.
“Camões humorista? Porque não?”, sugeriu o professor, passando a exemplificar passagens cómicas do poeta, ao longo de mais de 20 páginas.
“E se o humor é um aspecto fundamental do espírito humano, condutor até do comportamento do Homem, não valerá a pena estudá-lo a fundo, para melhor conhecimento do “príncipe” dos poetas lusitanos?”, refletiu Justino Mendes de Almeida, sobre Luís Vaz de Camões, em dezembro de 2007.
Gigante Camões!
CAMÕES – Luiz Vaz , nessas alturas do Tempo continuas no topo da Literatura mundial.