Cafunfo chora os seus mortos, ainda com corpos por enterrar

David Stanley / wikimedia

Assembleia Nacional de Angola, em Luanda

Quatro dias depois dos incidentes em que várias pessoas perderam a vida, Cafunfo chora os mortos, procurando ainda os corpos das vítimas, num lamento visível nas ruas pela morte de inocentes.

Testemunhas ouvidas pela Lusa contam mais de 20 mortos durante os incidentes ocorridos sábado na vila mineira da Lunda Norte, 750 quilómetos a leste de Luanda, enquanto as autoridades contabilizam apenas sete e alegam ter reagido a uma tentativa de invasão de uma esquadra, um “ato de rebelião” protagonizado por elementos armados do Movimento Protetorado Português da Lunda Tchokwe.

Cafunfo já não está em estado de sítio como os moradores relataram no passado fim de semana, mas polícias e elementos das Forças Armadas Angolanas continuam visíveis em redor da vila mineira, acessível por uma penosa estrada onde é difícil fazer os 44 quilómetros desde Cuango, o município mais próximo, em menos de duas horas.

Mas a vila está de luto e, entre os habitantes, sente-se a indignação e a revolta dos que estão ainda em busca de familiares e não percebem o porquê da violência das forças angolanas.

André Candala, 62 anos, catequista e coordenador da comunidade São José Operário, no bairro Bala Bala, disse à Lusa que morreram, pelo menos, 25 pessoas.

“O povo de Cafunfo está de luto. É uma tristeza, mesmo durante toda a guerra, do início da guerra de 61 até à guerra civil, nunca aconteceu a morte como hoje aconteceu a muitos”, salientou,

Segundo os seus registos, há 25 mortos, apesar de só sete corpos terem sido entregues às famílias. Outros, ainda por identificar, foram encontrados na ravina “onde se passou fogo”, enquanto outros corpos foram lançados ao rio.

André Candala diz que o governo mente e que, se a intenção dos manifestantes fosse invadir uma esquadra, teriam invadido o posto fiscal, na entrada da vila mineira.

“Mas deixaram [os manifestantes] avançar e foram emboscados e mortos com metralhadoras”, relata.

Os testemunhos recolhidos pela Lusa no local coincidem: houve muitas mortes e morreram inocentes. Um deles foi Zango Elias, seminarista, sobrinho de Alfredo Alexandre Moisés, coordenador das comunidades da Paróquia de São José.

A bala que lhe atingiu não foi pela frente, se fosse uma pessoa que vinha nessa marcha a bala deveria ter atingido à frente, mas atingiu atrás e saiu na barriga”, contou, mostrando a foto do jovem cujo único crime foi estar na rua: “Um inocente que estava a sair de casa”.

Nesta terra, rica em diamantes e pobres, o movimento Protetorado da Lunda Tchokwe é o alvo do governo no que toca a responsabilidades, mas algumas organizações não governamentais, oposição angolana e bispos católicos já consideram o incidente de sábado um “massacre”.

O ministro do Interior, Eugénio Laborinho, diz que foi o movimento que incitou a revolta contra o Estado, por interesses no garimpo e acusa forças estrangeiras na República Democrática de Congo de estarem na origem dos incidentes.

Mas quem mora em Cafunfo sente-se abandonado pelo governo e justifica o protesto com as condições de vida precárias da população.

André Candala diz que a pressão das autoridades começou ainda antes de sábado, dia 30 de janeiro, data em que o movimento pretendia realizar uma manifestação previamente comunicada. Entre os dias 27 e 29, “entraram nas casas, a fazerem buscas dos jovens”, muitos dos quais ainda desaparecidos.

Além da procura por pessoas potencialmente ligadas ao movimento, houve avisos da polícia à população para que se mantivessem em casa e o próprio administrador do município foi até uma igreja para alertar os moradores de Cafunfo.

“O administrador veio avisar que ‘o governo vai fazer tudo o que vocês querem, vai fazer a estrada, vai vos dar a água’, mas ninguém pode participar nesta marcha porque haverá risco”, disse Alfredo Moisés.

A mensagem espalhou-se e muitas famílias preferiram manter-se em casa com as crianças. Entre sábado e domingo, os moradores ficaram entrincheirados, sem poderem sair nem para comprar comida, contaram alguns habitantes.

“Nós cumprimos, ficámos nas nossas casas”, sublinha Alfredo Alexandre Moisés que tem estado a compilar listas de mortos, prisioneiros e desaparecidos, cruzando informações das famílias com os cadáveres que vão aparecendo.

As pessoas estão com medo, prossegue André Candala, também coordenador paroquial da Comissão de Justiça e Paz pelos Direitos Humanos

“Aqui ainda há caça ao homem, estão a tirar muita gente das casas, mas o povo agora tem medo de nos informar”, lamenta o responsável.

“Se vão perguntar, a polícia logo diz que ‘és do protetorado e por isso estás a procura dos outros’, então não vão”, corrobora Alfredo Moisés.

André Candala mostrou-nos as ravinas cobertas de lixo onde muitos terão caído já mortos e outros fugido, feridos ou não, escondendo-se nas matas.

Os corpos só começaram a ser encontrados quando as pessoas começaram a circular. “Os militares bloquearam essa parte toda, não queriam que a população passasse para ver os cadáveres”, continua André Candala, explicando por que só a partir de segunda-feira e terça-feira começaram a ser retirados corpos.

Alguns cadáveres foram encontrados a “passar no rio” por mulheres que voltavam das lavras. “Temos provas concretas do que se está a passar. O governo diz que são uns rebeldes que queriam invadir a unidade policial, mas é pura mentira”, critica o catequista.

André Candala pede ao governo que reconheça as mortes e diz que se havia, de facto, uma intenção de invadir, os infratores deviam ter sido presos: “eles é que fazem a lei, ninguém tem direito a tirar a vida, mesmo cometendo o erro, devem meter na cadeia e ser julgado”.

Defende também que as famílias devem ser indemnizadas e que ninguém estava “a fazer manifestação por fazer”, criticando os que “fazem o povo sentir medo e continuar a viver na miséria”.

“Disseram que estão a organizar um grupo das forças armadas para entrar nas casas, buscando catana, enxada, machado que são instrumentos dos camponeses. Isso é a vida do povo ou é para matar o povo?” – questionou, indignado.

Alfredo Moisés, diz que aos 72 anos, já não tem medo: “Temos de falar para o governo ouvir esse povo, por que é que morreram?”

Governo diz que foram violados direitos humanos

O ministro da Justiça e dos Direitos Humanos angolano admitiu esta quarta-feira que houve violações dos direitos humanos de parte a parte no incidente de Cafunfo.

Francisco Queiroz falava no final de um encontro mantido com a sociedade civil angolana, no qual participaram também o ministro do Interior, Eugénio Laborinho, e o comandante-geral da Polícia Nacional, Paulo de Almeida, sobre os incidentes de sábado, numa manifestação em que os populares são acusados pela polícia de uma rebelião armada.

De acordo com o governante angolano, a análise em termos de direitos humanos tem que ser feita na perspetiva do agressor e do agredido, e o primeiro “teve claramente atropelo aos direitos humanos”.

Ninguém pode pegar em armas, atentar contra a vida das pessoas, temos que recordar que um oficial superior das forças armadas foi agredido, teve quase à morte, foi incendiado com uma bomba de fabrico artesanal e um comissário da polícia também, claramente houve atentado aos direitos humanos aí, para além de outras implicações”, disse.

Do lado da polícia, prosseguiu o ministro, o comandante-geral da Polícia Nacional lamentou as mortes, reconhecendo que “houve de facto essa forma de lidar com aqueles que já não tinham vida, aqueles que estavam mobilizados, infelizmente uma prática que tem que ser revista”.

“O senhor comandante disse que vai haver um inquérito para responsabilizar aqueles que atuaram dessa maneira”, frisou.

Segundo Francisco Queiroz, o diálogo foi mais amplo, mais abrangente, tocando-se em questões que, embora não tenham uma relação muito direta, têm a ver com a situação.

“Foi um bom diálogo, todos ficaram felizes pela oportunidade e recomendaram a continuidade desta linha de atuação”, afirmou.

O titular da pasta da Justiça e dos Direitos Humanos salientou que a Procuradoria-Geral da República vai desenvolver a sua ação “ouvir pessoas, colher testemunhas, provas, organizar o processo e dar o andamento que tem de ser dado”.

Instado a comentar o pronunciamento, terça-feira, do comandante-geral da Polícia Nacional sobre a proporcionalidade de força, Francisco Queiroz considerou “o papel da polícia ingrato, porque nem sempre é possível de conciliar o que está em causa, que é a defesa do Estado, e os direitos humanos”.

O comandante-geral da Polícia Nacional afirmou, terça-feira, que na defesa da soberania de um Estado não pode haver proporcionalidade, como defendem os juristas.

“Isso é muito bom na teoria jurídica, nós aprendemos isso no direito. O Estado não tem proporcionalidade, você quando está a atacar a unidade, o Estado, o símbolo, está a atacar o povo”, referiu Paulo de Almeida, reforçando que “aqueles que tentarem invadir as esquadras ou qualquer outra instituição para tomada de poder, vão ter resposta pronta, eficiente e desproporcional da Polícia Nacional”.

Francisco Queiroz disse que fica às vezes difícil definir os limites no terreno, quando o polícia que está em cima do acontecimento, há dificuldades de “saber até onde vai o seu poder, até onde tem que respeitar os direitos humanos e às vezes acontecem coisas desagradáveis”.

“A proporcionalidade é outra questão, porque eu apareci com uma arma, com armas brancas, com instrumentos contundentes, fiz um golpe, a polícia tem que também tomar o mesmo tipo de arma, fazer golpe idêntico. Não é prático, não é assim, nenhuma polícia faz isso”, rematou.

O ministro reforçou que o que estava em causa era a defesa de um símbolo de poder, uma esquadra da polícia e uma bandeira nacional, que estava para ser substituída “com armas, por um grupo grande de pessoas”.

“Então, a proporcionalidade é um conceito difícil de usar nesta situação, é um ato quase de guerra, como é que eu vou para a guerra e vou estar a medir proporcionalidade, é um pouco por aí que temos que analisar e ver a dificuldade operativa que por vezes a polícia tem. A polícia não pode estar a fazer juízo no momento que tem que atuar, porque senão quando acordar está morto”, sublinhou.

Francisco Queiroz avançou que vai haver um inquérito criminal e outro do ponto de vista da atuação da polícia.

Segundo a polícia angolana, cerca de 300 pessoas ligadas ao Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT), que há anos defende a autonomia daquela região tentaram invadir, no sábado, uma esquadra policial e em defesa as forças de ordem e segurança atingiram mortalmente seis pessoas.

A versão policial é contrariada pelos dirigentes do MPPLT, partidos políticos na oposição e sociedade civil local que falam em mais de uma dezena de mortos.

ZAP // Lusa

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