Alucinação “Lilliput” faz-nos ver pessoas minúsculas. Mas não se sabe porquê

Photorama / pixabay

A complexidade do cérebro humano permite todo o tipo de experiências bizarras. Para alguns, provoca alucinações de pessoas minúsculas.

A alucinação de seres humanos em ponto pequeno pode ser divertida ou assustadora, dependendo a quem se pergunta, e os relatos destas visões “micro óticas” ou “liliputianas” são bastante escassos na literatura científica.

Segundo a Science Alert, poucos investigadores tentaram descobrir o que está por trás destas experiências caricatas.

No início do século XIX, Raoul Leroy, psiquiatra francês, interessou-se por estas visões de figuras humanas comparáveis aos minúsculos habitantes de Lilliput, no famoso romance de Jonathan Swift, de 1726, “Gulliver’s Travels”.

“Essas alucinações existem fora de qualquer micropsia, enquanto o paciente tem uma conceção normal do tamanho dos objetos que o rodeiam, a micropsia tem apenas em conta a alucinação”, escreveu Leroy na introdução de um caso em específico.

“Por vezes ocorrem sozinhas, por vezes vêm acompanhadas de outras perturbações sensoriais”, acrescentou o psiquiatra.

Os casos investigados por Raoul Leroy eram bastante diversificados mas, no geral, o psiquiatra notou que as visões eram coloridas, se moviam e, na sua maioria, os humanos minúsculos pareciam afáveis.

Ocasionalmente as visões eram de figuras individuais, embora a maioria dos pacientes as observasse em grupos, a interagir com o mundo material, como se estivessem verdadeiramente presentes, a subir a cadeiras e a passar pelas portas.

Mas todas as experiências foram tão inofensivas. Leroy deparou-se, no estudo, com uma mulher de 50 anos que sofria de alcoolismo, e afirmava ter visto dois homens “tão altos como um dedo“, vestidos de azul e a fumar um cachimbo.

Enquanto tinha a alucinação, a paciente alegou ter ouvido uma voz que a ameaçava de morte, até que a visão desapareceu, e a paciente fugiu.

“Na minha comunicação anterior à Sociedade Médico-Psíquica, disse que estas alucinações tinham um carácter bastante agradável, e que o paciente olhava para elas com tanta surpresa como prazer”, realçou Leroy.

“Já no caso da MM. Bourneville e no caso de Bricon , a aparição causou um sentimento de pavor“, acrescenta.

O que poderiam ser meras ilusões, foram interpretadas por Leroy como possíveis sintomas de doenças mentais, com necessidade de serem identificados, para que os médicos encontrassem melhores formas de diagnosticar e tratar a doença.

Influenciados pelo trabalho de Leroy, alguns psicólogos tentaram explicar o fenómeno. Os relatos limitavam-se, na sua maioria, a hipóteses não testadas, que envolviam o funcionamento misterioso do cérebro, ou algum tipo de regressão freudiana.

Apesar deste interesse inicial, as alucinações “liliputianas” não são tidas em conta como critério para quaisquer doenças, na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde.

A síndrome de Charles Bonnet, uma doença rara, é uma exceção. Provoca alucinações, como resultado da perda de visão.

Embora estas alucinações nem sempre assumam a forma de pessoas minúsculas — podendo ser flashes de luz, formas geométricas, ou mesmo apenas linhas —  podem aparecer na forma “liliputiana”.

Um estudo publicado em fevereiro de 2021 analisou voluntários com síndrome de Charles Bonnet e descobriu que as alucinações aumentaram durante a pandemia de covid-19, talvez devido à solidão das quarentenas.

Em alguns casos, as dimensões das alucinações “liliputianas” cresceram para proporções maiores, e mais humanas.

Apesar do trabalho de Raoul Leroy e dos avanços na compreensão de várias condições mentais, pouco se sabe sobre o porquê de alguns cérebros criarem visões de pessoas minúsculas.

Recentemente, Jan Dirk Blom, historiador médico e investigador de perturbações psicóticas da Universidade de Leiden, procurou mudar isso, realizando uma pesquisa rigorosa de relatos de casos de alucinações “liliputianas”.

Blom conseguiu investigar apenas 26 casos de alucinações, que poderiam ser considerados relevantes, e penas 24 tinham descrições originais das visões.

“Durante as décadas de 1980 e 1990, raramente eram publicados novos casos, e a questão da fonte subjacente das alucinações liliputianas caiu no esquecimento“, realçou Blom no seu estudo, publicado em junho de 2021, no Neuroscience & Biobehavioral Reviews.

“Apesar de ter surgido algum interesse no fenómeno durante as duas últimas décadas, essa situação permaneceu basicamente inalterada“, diz Blom.

O investigador incluiu mais referências históricas do que clínicas na sua pesquisa, incluindo capítulos de livros e teses médicas, acabando por elaborar um conjunto de 226 casos únicos, para comparar e contrastar.

As suas experiências e antecedentes foram variados e divididos entre relatórios masculinos e femininos. O mais velho tinha 90 anos de idade e o mais jovem apenas quatro. Mas os sintomas eram os mesmos.

A maioria das pessoas relatou alucinações de pequenos humanos, vestidos com roupas marcantes e coloridas.

Não eram sombras que se esquivavam no canto do olho, mas sim um conjunto vibrante de palhaços ou mesmo soldados a saltitar pela mobília. Apenas uma pequena porção dos casos relatou visões em tons de cinzento, ou acastanhados.

Alguns doentes relataram rostos familiares, e até casos de autoscopia — vendo-se a si próprios em formato pequeno.

Em um quinto de todos os casos, as visões eram acompanhadas de alucinações auditivas, muitas vezes abafadas ou com um timbre de alta intensidade.

Os seres humanos também não foram as únicas entidades observadas. Em quase um terço dos relatórios, os pacientes afirmavam ver animais, tais como pequenos ursos, ou pequenos cavalos.

97% dos casos reportam visões em três dimensões, que se envolvem com a física do mundo real. Os restantes foram relatados como projeções 2D numa superfície, ou em andamento através do movimento da cabeça do doente.

Quase metade dos casos afetaram negativamente as pessoas, deixando-as com medo ou com ansiedade. Contrariamente à investigação de Leroy, apenas um terço dos doentes se “entreteve” com a experiência.

Relativamente aos relatórios de diagnósticos clínicos, Blom criou 10 grupos distintos, sendo mais proeminentes o distúrbio psiquiátrico, intoxicação por álcool ou medicação, e lesões do sistema nervoso central.

Blom sugere que a perda da sensação periférica pode significar que as partes do cérebro normalmente envolvidas no processamento da informação estão a desviar-se da tarefa, reunindo o pouco estímulo que encontram para projetar uma uma visão de multidões e cor.

O envolvimento do sistema visual do cérebro já foi estudado anteriormente, em ressonâncias magnéticas feitas a doentes com síndrome de Charles Bonnet, que corroboram a possibilidade. Mas ainda são necessárias investigações mais detalhadas a nível neurológico.

O facto de ser uma experiência comum para os que sofrem da síndrome Charles Bonnet, e para quem apresenta condições como Parkinson, por vezes relatando as alucinações ao anoitecer, parece acrescentar peso a esta hipótese.

Há outras teorias que explicam as visões, como uma “invasão de sonho“, onde as imagens normalmente suprimidas aparecem no quotidiano e se misturam com a realidade, ou simplesmente ocorre uma mistura de fenómenos neurológicos, inspirados em memórias.

Existem pequenas figuras humanas no folclore de todo o mundo, sob a forma de duendes brincalhões, demónios aterradores, ou velhos anões sábios. As visões “liliputianas” talvez transportem estes mitos históricos para a realidade.

ZAP //

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