Uma nova análise ao fenómeno do “binge-watching” revelou potenciais benefícios deste comportamento, incluindo a possibilidade de os espectadores construírem “mundos mentais” onde as histórias e personagens continuam para além da narrativa original.
Fazer maratonas a ver séries de forma compulsiva na televisão ou nas plataformas de streaming como o Netflix faz-nos bem, conclui um novo estudo.
Os resultados do estudo, conduzido por cientistas da Universidade da Geórgia, nos EUA, foram apresentados num artigo recentemente publicado na Acta Psychologica.
Os investigadores concluíram que o envolvimento mental contínuo com histórias de ficção, após maratonas televisivas, pode melhorar a memória e ajudar os espectadores a gerir emoções em períodos de stress.
Benefícios semelhantes foram encontrados na leitura compulsiva de livros, embora de forma menos acentuada.
“Os seres humanos são criaturas que vivem de histórias”, diz Joshua Baldwin, investigador da U.Georgia e autor principal do estudo, num comunicado da universidade.
Baldwin sugere que as narrativas mais longas criadas durante maratonas de televisão podem ajudar a satisfazer necessidades humanas básicas, como ligar-se a outras pessoas, sentir-se autónomo e confiante, ou até seguro e protegido.
“As histórias têm personagens que desempenham esses papéis, e podemos satisfazer essas necessidades através delas”, explica o investigador.
Para explorar os potenciais benefícios de um comportamento frequentemente considerado pouco saudável, os cientistas recrutaram centenas de estudantes para dois ensaios clínicos.
Cada participante foi convidado a listar três histórias memoráveis de televisão, livros e filmes que continuavam a pensar mesmo quando já não as estavam a ver ou a ler. Foram também convidados a identificar três histórias não memoráveis, de que nunca se lembravam fora do momento de visionamento ou leitura.
Ao organizar as respostas, a equipa selecionou a história mais memorável e a segunda menos memorável de cada categoria. Os investigadores justificaram a escolha da segunda, e não da terceira, “por receio de que nem todos os participantes conseguissem listar três histórias”.
Relativamente às histórias selecionadas, os participantes responderam a perguntas sobre o meio (televisão, cinema ou livro), a duração de cada sessão de visionamento ou leitura e a sua apreciação global da narrativa.
Em especial, cada participante foi questionado sobre a frequência com que interagia mentalmente com as histórias e personagens fora desses momentos — um processo designado de envolvimento retrospetivo-imaginativo (RII).
Um segundo conjunto de perguntas incidiu sobre a motivação geral para ver televisão ou ler, incluindo opções como “expansão de horizontes” ou “escapismo”.
Por fim, cada voluntário respondeu a questões sobre a sua tendência para ver televisão de forma compulsiva, o tempo livre de que dispunha e os níveis de stress sentidos.
Como esperado, a equipa verificou que os participantes que viam vários episódios de uma série numa só sessão apresentavam níveis mais elevados de RII relativamente à história do que aqueles que viam episódios isolados.
Os autores do estudo sugerem que este maior envolvimento fantasioso se deve à maior memorabilidade das histórias acompanhadas em maratonas televisivas, em comparação com um consumo episódico.
“As pessoas que têm o hábito de ver séries em maratona muitas vezes não o fazem de forma passiva, mas continuam ativamente a pensar nelas depois”, disse Baldwin. “Querem realmente envolver-se com as histórias, mesmo quando não estão a ver televisão.”
A equipa encontrou também correlações semelhantes com a leitura compulsiva. Baldwin afirmou que essa relação fazia sentido, dado o maior envolvimento conseguido em sessões de leitura prolongadas.
“Se pensarmos em pessoas que são grandes leitoras, que chegam a ler um livro inteiro de uma vez, é provável que tenham uma melhor memória dessa obra e maior tendência para se envolver mentalmente com a história depois de a terminarem”, explicou o investigador.
Uma análise mais profundada dos questionários revelou que a maior duração associada às maratonas televisivas ou de leitura tornava as histórias “mais memoráveis”, aumentando assim as probabilidades de ocorrência de RII.
Os autores concluíram ainda que os participantes que recorriam à visualização compulsiva como forma de escapismo tinham maior propensão para se envolver em fantasias sobre as histórias vistas.
“As maratonas de televisão podem tornar as histórias mais memoráveis, ajudando os espectadores a ligar os fios narrativos e a reter uma visão mais ampla do enredo”, escreveram os investigadores. “Isto é especialmente verdade em séries longas, com múltiplas linhas narrativas e muitas personagens para acompanhar.”
Na conclusão do estudo, os cientistas recordam que ver televisão em maratona “tem sido, por vezes, encarado como uma atividade disfuncional associada ao excesso e à indulgência inconsciente”.
Contudo, os resultados mostram que “não é sempre o caso de o consumo consecutivo de media ser disfuncional, como prova o envolvimento em RII dos participantes com narrativas vistas em maratona ou leituras prolongadas”.
“Há muito debate sobre se os media são bons ou maus, mas é sempre uma questão complexa”, disse Baldwin. “Depende sempre do conteúdo em si, das razões que levam as pessoas a vê-lo, do contexto psicológico do indivíduo e da situação.”