Há cada vez mais espiões mercenários no país de James Bond

O crescimento de empresas privadas de espionagem no Reino Unido está a gerar preocupações em torno da privacidade e de violações da lei em nome de quem está disposto a pagar.

No coração do luxuoso bairro de Mayfair, em Londres, por entre edifícios discretos e fachadas elegantes, prospera uma indústria de inteligência privada em rápida expansão.

Composta por ex-espiões, antigos polícias, militares e jornalistas de investigação, estas empresas oferecem serviços desde simples verificações de antecedentes a operações de vigilância complexas e, segundo várias fontes, chegam por vezes a cruzar a linha da legalidade.

Uma investigação do Politico revelou que muitas destas empresas, fundadas ou assessoradas por antigos chefes do MI6 e altos responsáveis das forças de segurança, operam praticamente sem supervisão. Os críticos alertam que esta falta de regulação permite violações graves da privacidade, manipulação do sistema judicial e exploração por parte de potências estrangeiras.

Hacking, perseguição e dados roubados

O setor da inteligência privada está em crescimento no Reino Unido, alimentado pelo prestígio de antigos espiões que integram os conselhos de administração. Esses nomes de peso servem para atrair clientes internacionais, desde grandes empresas envolvidas em litígios até oligarcas à procura de influência ou proteção.

Grande parte da atividade destas empresas envolve tarefas rotineiras, como verificar se alguém está numa lista de sanções ou se recebeu cobertura negativa da imprensa. De acordo com uma fonte anónima do setor, este trabalho é geralmente feito por jovens recém-formados “não é muito bem pago nem empolgante”.

Já as funções que são bem pagas envolvem outras envolvem práticas altamente questionáveis ou ilegais como vigilância encoberta, roubo de dados e, em casos extremos, pirataria informática. Este tipo de métodos foi inclusive usado em 2017 pela empresa israelita Black Cube, que espiou espionado jornalistas e usou identidades falsas para obter informações sobre as acusadoras de Harvey Weinstein.

Uma profissional do setor afirma que “todas as técnicas típicas que pode imaginar de um romance de Tom Clancy” estão em jogo. Os pedidos de hacking não são incomuns e que existe uma cultura de secretismo e tolerância a condutas eticamente duvidosas. Jornalistas, denunciantes e dissidentes políticos relataram ter sido seguidos, vigiados e alvo de campanhas de intimidação.

A proximidade da indústria aos setores jurídico e financeiro britânicos torna Londres um polo de atração para casos de litígio complexos, muitas vezes com origem na Rússia, Cazaquistão ou outras ex-repúblicas soviéticas. Algumas empresas de inteligência britânicas colaboram com entidades estrangeiras para localizar ativos, monitorizar alvos e influenciar processos legais internacionais.

Alvos filmados dentro de casa

A ausência de regulamentação permite que provas obtidas ilegalmente sejam introduzidas nos tribunais com o aval — ou a negligência — de escritórios de advogados. Algumas fontes denunciam a existência de “histórias de encobrimentos absurdas” usadas para justificar a origem dos dados perante juízes, numa tentativa de branquear informações roubadas.

As vítimas deste tipo de espionagem raramente têm meios financeiros para se defender. Um dos visados relatou ter sido filmado dentro de casa, alvo de ataques informáticos e abordado com emails com esquemas de phishing altamente personalizados. Outro afirmou que a sua família foi perseguida por viaturas com câmaras colocadas em frente à residência.

A Privacy International alerta para os riscos sérios que este setor representa para a democracia. “Escândalos de grande repercussão já expuseram os perigos, incluindo o hackeamento de representantes do governo e a monitorização de ativistas defensores do meio ambiente e dos direitos humanos”, acrescentou Ilia Siatitsa, membro da organização. “Apesar das evidências avassaladoras de abuso, o setor continua a prosperar num ambiente permissivo.”

Apesar da crescente preocupação e de alguns esforços legislativos, o setor continua praticamente sem regulação obrigatória. Há até quem ache que todo o mediatismo em torno dos métodos ilegais dos espiões mercenários só acaba por ajudar estas empresas a angariar mais cliente.

“Quando vejo empresas privadas de inteligência a ser processadas pela imprensa ou pelos tribunais por esse tipo de transgressão, penso que elas só vão lucrar com isso. Para um certo tipo de cliente, é exatamente isso que eles querem que seja feito — e isso é marketing gratuito”, remata uma fonte do setor.

Adriana Peixoto, ZAP //

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