
Envolveu-se com clérigos, desafiou a Igreja e as convenções do século XIV, comandou ataques a instituições religiosas. Sexo, poder, vingança… este homicídio medieval londrino tem tudo menos justiça.
A investigação é da prestigiada Universidade de Cambridge e traz à tona um caso há muito enterrado na história, mas que chocou a Londres medieval de 1337.
A escandalosa trama de vingança envolve uma famosa nobre, um padre e o assassinato deste em via pública. O crime nunca foi resolvido, os responsáveis saíram impunes e, 700 anos depois, continua envolto em mistério. Mas uma nova investigação, publicada este mês na revista Criminal Law Forum, traz novos detalhes a público.
Na tarde de 3 de maio de 1337, o sacerdote anglicano John Forde passeava por Cheapside, no centro de Londres, depois das orações vespertinas, quando foi abordado por um conhecido seu, o clérigo Hasculph Neville.
A conversa foi interrompida por uma emboscada: quatro homens atacaram Forde perto da Catedral de São Paulo. Um dos criminosos cortou-lhe a garganta com uma faca de 30 centímetros, enquanto outros dois o esfaquearam no abdómen, em plena rua e perante várias testemunhas. O Medieval Murder Map da Universidade de Cambridge recria o percurso do líder religioso.
Abaixo, o local do crime como se encontra atualmente:
A brutalidade do crime não teve motivação política nem financeira, explicam os investigadores. Tudo aponta para um homicídio premeditado, alegadamente encomendado por Ela Fitzpayne, uma aristocrata londrina, possível líder de um grupo criminoso — e, ditam os indícios recolhidos, ex-amante do sacerdote Forde.
Foi um crime “planeado e executado a sangue-frio”, levado a cabo por familiares e cúmplices próximos da nobre, com claros indícios de vingança, explica, citado pela EurekAlert, o professor de criminologia Manuel Eisner, de Cambridge.
Uma história de vingança
O conflito terá sido levantado anos antes. Em janeiro de 1332, o arcebispo de Cantuária, Simon Mepham, enviou uma carta ao bispo de Winchester, acusando a mulher nobre de manter relações sexuais com cavaleiros, homens casados e clérigos.
Como castigo, foi-lhe imposta uma humilhante penitência pública: caminhar descalça ao longo da nave (a parte central) da Catedral de Salisbury — a mais longa de Inglaterra — enquanto carregava uma vela de cera de quase dois quilos.
E o castigo — que, assim descrito, lembra a caminhada da expiação de Cersei Lannister em A Guerra dos Tronos — deveria repetir-se todos os anos durante sete anos. Mas ao contrário da pecadora da série ficcional, Ela Fitzpayne (que, curiosamente, também se casou com um Robert) recusou-se a cumprir a ordem e ficou escondida em Rotherhithe, um bairro junto ao Tamisa. A sua desobediência levou à excomunhão.
E quem tinha denunciado os pecados da nobre? Precisamente: John Forde, que seria violentamente assassinado mais tarde e que levou à redação deste artigo.
A penitência de Ela e a falta de uma para Forde “pode ter suscitado uma sede de vingança“, acredita Eisner. Na altura da condenação de Fitzpayne, Forde era pároco de uma vila que ficava nas terras da família Fitzpayne. Agora, os investigadores de Cambridge acreditam que Forde terá sido pressionado pelas autoridades eclesiásticas a revelar o caso, em troca de escapar à punição, desencadeando a humilhação pública de Ela.
E a ligação entre os dois saiu do quarto. Em 1322, ambos foram acusados, juntamente com Sir Robert Fitzpayne, marido de Ela, de participar num saque a um priorado beneditino. Segundo os registos, o grupo roubou dezenas de bois, porcos e ovelhas. O mosteiro era afiliado a uma abadia francesa. numa altura em que cresciam as tensões com França que antecederam a Guerra dos Cem Anos.
Juiz fechou os olhos
Apesar das provas recolhidas — incluindo o testemunho de três pessoas que afirmaram ter visto o irmão de Ela, Hugh Lovell, cortar a garganta do padre — ninguém importante foi punido. O tribunal alegou não conseguir localizar os acusados e que Hugh não possuía bens confiscáveis.
Nesta trama, só uma pessoa foi condenada: um antigo servo da família, Hugh Colne, já cinco anos depois do crime — “a típica justiça baseada na classe social da época”, aponta Eisner citado pela Popular Science.
“Apesar de ter nomeado os assassinos e de ter um conhecimento claro do instigador, quando chegou a altura de perseguir os perpetradores, o júri fechou os olhos”, explica o investigador de Cambridge.
Entretanto, Ela Fitzpayne manteve-se casada com Sir Robert até à sua morte, em 1354, altura em que herdou todos os seus bens.
“Ela Fitzpayne foi, sem dúvida, uma figura “extraordinária”, concluiu Eisner. “Uma mulher na Inglaterra do século XIV que desafiou abertamente o Arcebispo de Cantuária e planeou o assassinato de um padre”.