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Relatório polémico propõe fim da amnistia a crimes contra a Humanidade durante a ditadura no Brasil

Lucio Bernardo Jr / Câmara dos Deputados

A presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante a ditadura militar no Brasil, chora ao receber o relatório da Comissão Nacional da Verdade

A presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante a ditadura militar no Brasil, chorou ao receber o relatório final da Comissão Nacional da Verdade

Ao fim de dois anos e sete meses de investigação sobre as violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com especial foco nos delitos da ditadura militar, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi entregue esta quarta-feira à presidente Dilma Rousseff, com 29 recomendações às autoridades nacionais.

As recomendações da CNV brasileira remetem à punição dos autores de crimes durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), à prevenção da ocorrência de abusos de natureza semelhante e à abolição de práticas e estruturas da época que ainda permanecem.

No entanto, os crimes cometidos por grupos de esquerda na altura são ignorados pelo texto, o que está a gerar polémica junto à direita brasileira, que considera que está a omitir-se uma parte da História.

O documento destaca a herança do regime militar como um fator de peso para a violência no Brasil atualmente, dando como exemplo a prática de tortura em instalações da polícia, e recomenda uma série de mudanças com grande impacto na área de segurança pública, como a desmilitarização da polícia e reformas no sistema prisional.

O relatório diz que “embora não ocorra mais em um contexto de repressão política – como ocorreu na ditadura militar -, a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e mesmo ocultação de cadáveres não é estranha à realidade brasileira contemporânea“.

Hoje o Estado brasileiro mata mais do que matava na época da ditadura. A situação atual permite que se passe uma borracha nesses casos”, afirma diretor para a América Latina da Open Society Foundations, Pedro Abramovay, que foi Secretário Nacional de Justiça em 2010, no governo de Lula da Silva.

Segundo o responsável, aprovar o projeto de lei é fazer a ponte entre o trabalho na Comissão da Verdade, de apurar as mortes provocadas no passado, e o futuro, impedindo que o Estado continue “a matar impunemente como tem feito atualmente”.

Crimes contra a Humanidade

O documento atribui a continuidade destes abusos à falta de punição aos crimes cometidos durante a ditadura, como tortura e assassinatos de opositores ao regime. A CNV identifica no seu relatório 377 autores de graves violações de Direitos Humanos e pede que os infratores vivos – cerca de 200 – sejam levados a julgamento.

Esta foi a única recomendação em que não houve unanimidade entre os seis membros da comissão, que consideram que a Lei da Amnistia – que, em 1979, perdoou crimes cometidos por agentes da ditadura e opositores do regime – é “incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional”. O jurista José Paulo Cavalcanti Filho foi o único que se opôs à revisão do diploma.

Enquanto muitas das recomendações dependem da aprovação do Congresso brasileiro para serem concretizadas, a revisão da Lei da Amnistia tem que ser avaliada pelo Supremo Tribunal Federal, o que já está a gerar polémica no país.

A CNV abre a sua lista de recomendações pedindo também que as Forças Armadas reconheçam “a sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de Direitos Humanos durante a ditadura militar”.

No relatório, o órgão sustenta que os crimes praticados pelo regime militar foram resultados de uma “ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro”, responsabilizando os cinco presidentes do período militar  – Emílio Médici, Ernesto Geisel, João Figueiredo, Arthur Costa e Silva e Humberto Castelo Branco – por violações de Direitos Humanos, refutando a tese de que se trataram de atos isolados.

O documento confirma 434 vítimas fatais do regime militar, sendo 191 mortos, 210 que continuam desaparecidos e 33 cujos corpos foram posteriormente localizados.

Apenas um foi encontrado vivo durante os trabalhos da CNV.

Agentes da ditadura brasileira atuaram em Lisboa

Outra das informações que constam no relatório da Comissão da Verdade é que o serviço secreto de espionagem da ditadura militar brasileira atuou em Lisboa para vigiar brasileiros contrários ao regime. A espionagem acontecia através do Centro de Informações do Exterior (Ciex), tutelado pelo Ministério das Relações Exteriores.

A comissão informou ter conseguido reunir elementos documentais ou testemunhais de que o Ciex teve bases em Lisboa, Paris, Genebra, Praga, Moscou, Varsóvia, Berlim Oriental, Santiago, Montevidéu, Buenos Aires e Assunção.

Há também “fortes indícios”, segundo o relatório, de que o sistema de espionagem no exterior funcionasse também em La Paz, Lima, Caracas e Londres. Os principais focos do Ciex, entretanto, eram os países do Cone Sul da América Latina, onde havia mais exilados brasileiros.

A Comissão da Verdade informou também, com base no depoimento de um embaixador, que o Ciex chegou a Lisboa em 1974, logo após a queda da ditadura portuguesa, e que “deveria recorrer a informantes pagos para acompanhar as atividades políticas dos exilados”.

O embaixador citado “não mediu palavras para desqualificar o Ciex – que, ao seu ver, fazia o trabalho sujo de polícia política, nada tendo de um verdadeiro órgão de inteligência”, informa o relatório final da comissão.

O documento também afirma que, logo após a Revolução dos Cravos, foram enviadas para a Embaixada do Brasil em Lisboa orientações sobre como atuar perante a tentativa de brasileiros “ligados à subversão” de se estabelecerem em Portugal.

A recomendação era a de que se enviasse mensalmente para Brasília os nomes, a identificação e outras informações sobre os brasileiros que tivessem entrado no país após o 25 de abril de 1974 e que contactassem com os postos consulares pela primeira vez, e também daqueles cuja chegada a Portugal fosse possível apurar por outras fontes, como a imprensa ou contatos de terceiros.

A espionagem feita pelo Ciex em Lisboa incluiu informações sobre a passagem do ex-presidente brasileiro João Goulart (derrubado pelo golpe militar em 1964) pela cidade, em outubro 1976, e uma especulação sobre um possível encontro com o então primeiro-ministro Mário Soares, segundo o relatório da CNV.

AF, ZAP / BBC / Lusa

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