Inclusão ou censura? A polémica dos insultos capacitistas nas canções de Lizzo e Beyoncé

Nat Ch Villa / Wikimedia

As cantoras incluíram recentemente um termo ofensivo para as pessoas com paralisia cerebral em duas canções e removeram-no depois de serem criticadas. Os activistas aplaudem a mudança, mas há quem considere o caso mais um exemplo da censura do politicamente correcto.

Nas últimas semanas, as redes sociais têm sido o palco de discussões sobre o uso difundido de termos capacitistas na música. A conversa começou com a canção “Grrrls” da cantora Lizzo, que incluía o termo “spaz” — que é calão para espástico e em certos contextos é usado como um insulto contra pessoas com paralisia cerebral.

“Hey, Lizzo. A minha deficiência e paralisia cerebral literalmente chama-se Diplegia Espástica (com a espasticidade a referir-se ao aperto doloroso infindável nas minhas pernas), por isso a tua música deixa-me bastante zangada e triste. “Spaz” não significa ficar louco ou perder o controlo. É um insulto capacitista. É 2022. Faz melhor”, escreveu a activista Hannah Diviney no Twitter.

Diviney não foi a única a manifestar a sua desilusão. “Não há desculpa para se usar um insulto capacitista numa música em 2022. Enquanto uma pessoa que celebra as mulheres, as pessoas plus size e outros que a sociedade trata mal, a Lizzo prega a inclusão e deve fazer melhor”, considera Callum Stephen, que advoga os direitos das pessoas com autismo.

A conversa acabou por se tornar viral. O tweet de Hannah Diviney acumulou mais de 9500 gostos e até a própria Lizzo acabou por o ver. A cantora pediu desculpa e anunciou que vai mudar a letra da música.

“Fui chamada à atenção sobre a palavra insultuosa na minha nova música Grrrls. Quero deixar isto claro: nunca quis promover linguagem depreciativa. Enquanto uma mulher gorda e negra na América, já foram usadas muitas palavras ofensivas contra mim e eu entendo o seu poder. Estou dedicada a ser parte da mudança que quero ver no mundo”, justificou a artista.

Pouco mais de um mês depois da polémica com Lizzo, é agora a vez de Beyoncé ser o centro de uma controvérsia semelhante. Na canção Heated, uma colaboração com o rapper Drake, no seu novo álbum Renaissance, a cantora também usa o termo “spaz” duas vezes.

Numa coluna de opinião no The Guardian, Hannah Diviney mostrou novamente o seu descontentamento. “Pensei que tínhamos começado uma conversa global sobre porque é que a linguagem capacitista — intencional ou não — não tem lugar na música. Mas parece que estava errada“, escreveu.

A activista reforça que Beyoncé tem usado a sua experiência como mulher negra na sua música, mas que isso não é “desculpa” para o uso desta linguagem que é “usada e ignorada demasiadas vezes”.

A Sense, uma organização de caridade dedicada ao apoio a deficientes no Reino Unido — onde o termo é especialmente visto como ofensivo — também criticou a escolha de Beyoncé, considerando que foi particularmente “decepcionante” visto que há poucas semanas Lizzo já tinha sido alertada para o mesmo problema.

Entretanto, Beyoncé anunciou também que vai retirar a palavra da letra da canção. Num comunicado, a equipa da artista revela que o termo não foi usado com a intenção de ofender a comunidade deficiente e que vai ser substituído.

“O nosso sofrimento parece invisível”

Estes casos não são os únicos, já que na indústria da música ainda é comum a inclusão de termos capacitistas como “retardado” ou “atrasado mental” nas canções ou de referências a deficiências como se tratassem de insultos. A banda Black Eyes Peas, por exemplo, mudou em 2004 o nome e a letra da canção “Let’s Get It Started”, que originalmente se chamava “Let’s Get Retarded“.

Para a escritora Kathryn Bromwich, a música é apenas a ponta do iceberg quando o assunto é a discriminação contra pessoas com deficiências, que ainda enfrentam obstáculos nos cuidados de saúde, na falta de apoios ou na procura de emprego e que também sofrem com os preconceitos na busca por amizades ou pelo amor.

Numa coluna no The Guardian, a autora refere ainda outros exemplos recentes de capacitismo, como a edição numa fotografia para a remoção da prótese de uma modelo deficiente numa campanha do Governo de Espanha de celebração da aceitação corporal.

Bromwich argumenta que o facto de ninguém nas equipas de Lizzo ou Beyoncé se ter apercebido do significado ofensivo da palavra é um sinal de quão difundido o capacitismo está na sociedade.

“Nenhuma das pessoas envolvidas nestes contratempos infelizes vai alguma vez admitir ter um pingo de capacitismo, claro. Todos eles, quase certamente, vão dizer que não têm um único osso capacitista no seu corpo e muitas vezes, as desculpas assumem a forma de “desculpa se ficaste ofendido”, assinala.

Se nos últimos anos houve uma “mudança sísmica” na discussão sobre a inclusão, parece que a “deficiência ficou para trás“. “Vez após vez, a diversidade é apenas vista pela lente da raça ou do género, a positividade corporal é associada ao peso. Ao contrário do Black Lives Matter ou das marchas das mulheres, os protestos da comunidade deficiente posam muitas dificuldades logísticas, especialmente com as taxas de covid ainda altas que fazem muitas pessoas vulneráveis se protejam, por isso o nosso sofrimento parece muitas vezes invisível”, defende.

“O capacitismo é universal e está inextricavelmente enraizado na nossa sociedade e linguagem: deformado, desfigurado, aleijado — são todos termos negativos que se assemelham a algo grotesco, que deve ser evitado a todo o custo. Precisamos de uma mudança importante para lutarmos contra milhares de anos de preconceito. Não vai acontece da noite para o dia. Mas se a mudança não começa com as coisas pequenas, as mais importantes nunca se seguirão”, apela.

O Twitter “adora cancelar tudo”

Nem toda a gente vê estas mudanças nas letras das músicas com bons olhos. Num texto na revista spiked entitulado “O Twitter agora co-escreve as canções da Lizzo?”, a colunista Ella Whelan lembra que o termo “spaz” tem significados diferentes no Reino Unido e nos Estados Unidos, especialmente na gíria da comunidade afro-americana, que usa a palavra como sinónimo de se perder o controlo.

“Claro que a música da Lizzo não estava a gozar com as pessoas que sofrem de contrações musculares involuntárias. Nas suas próprias palavras, a canção ‘Grrrls’ é sobre dançar como uma ‘C-E-ho’ e o poder das amizades femininas”, argumenta.

A autora considera ainda surpreendente que as desculpas de Lizzo tenham sido geralmente aceites “neste tempo onde se adora cancelar tudo” e onde “o contexto raramente importa” e cita outros exemplos de artistas que tiveram de se “censurar” como resposta a críticas.

“Lizzo não é estranha ao ‘poder das palavras’, usando frequentemente linguagem provocativa nas suas canções. ‘Grrrls’ também inclui a frase ‘I’ma go Lorena Bobbitt on him so he never fuck again’ — referindo a mulher que cortou o pénis do marido em 1993 enquanto ele dormia, depois de ter alegado sofrer abusos e violações durante anos. Talvez se muitos sobreviventes de violência doméstica escreverem no Twitter sobre os seus sentimentos feridos, Lizzo tenha de mudar a canção outra vez”, afirma.

A colunista remata considerando que deve ser “exaustivo” para os artistas ter de garantir que não ofendem ninguém. “Recusar caminhar em cascas de ovo não nos torna inimigos do progresso. Já está na hora destas ‘grrrls’ ganharem estofo”, remata.

Adriana Peixoto, ZAP //

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