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“Flagrantemente inconstitucional”. Texas proíbe o aborto após seis semanas – a lei mais radical dos EUA

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Sergio Flores / Getty Images

Já desde Maio que a nova lei tem motivado protestos. “Os vossos mitos não têm lugar nas leis de uma nação secular”, lê-se num dos cartazes

Entrou em vigor no Texas uma lei que proíbe o aborto depois de seis semanas, quando muitas mulheres ainda não sabem que estão grávidas. O estado vai também pagar a quem denunciar quem fizer abortos ou auxiliar de alguma forma.

Uma nova lei polémica entrou em vigor na Quarta-Feira no Texas, nos Estados Unidos. A legislação proíbe o aborto após as primeiras seis semanas, quando muitas mulheres ainda nem sabem que estão grávidas, mesmo em casos de incesto ou violação.

A única excepção é em casos de emergência médica, que exigem uma prova escrita de um médico. Segundo dados do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, 64% dos abortos no Texas ocorrem depois das primeiras seis semanas.

A medida inclui também um pagamento de 10 mil dólares – cerca de 8400 euros – a quem denunciar casos de mulheres que tenham feito abortos, com muitos activistas anti-aborto a agora auto-intitularem-se como “caçadores de recompensas“.

Além das próprias pacientes, todos os profissionais de saúde que assistam ao procedimento podem também ser processados e até taxistas ou motoristas que levem as mulheres até às clínicas podem ser constituídos arguidos.

“Se o empregado no Starbucks te ouvir a falar do teu aborto, e foi feito depois de seis semanas, esse empregado está autorizado a processar a clínica onde fizeste o aborto e a processar qualquer pessoa que te tenha ajudado, como o motorista da Uber que te levou até lá”, explicou Melissa Murray, professora de Direito na Universidade de Nova Iorque ao The New York Times.

A lei foi aprovada nas órgãos legisladores dominados pelos Republicanos no Texas e foi assinada em Maio pelo Governador Greg Abbott, que considera que estará a “salvar muitas vidas da devastação do aborto”.

Ameaça ao Roe v. Wade

O Texas torna-se assim no primeiro estado a banir o aborto numa fase tão inicial da gravidez desde a aprovação do Roe v. Wade – um caso judicial de 1973 em que o Supremo Tribunal dos EUA reconheceu o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG) até ao ponto em que o feto é viável, o que acontece geralmente entre as 24 e 28 semanas.

A maioria dos estados segue os critérios do Roe v Wade, mas em 2019 alguns outros – como a Georgia, o Kentucky, o Louisiana, o Missouri, o Mississippi, o Ohio, o Louisiana, o Utah, o Arkansas ou o Alabama – começaram aprovar leis que limitavam o acesso ao aborto, várias com o mesmo critério das seis semanas.

Já este ano, o Idaho, o Oklahoma e a Carolina do Sul também aprovaram leis semelhantes. Contudo, mas foram desafiadas legalmente e ainda não entraram em vigor. Assim, o Texas tornou-se o primeiro estado a proibir o aborto tão cedo desde o Roe v. Wade.

“Alguns apoiantes querem evidentemente criar um caso que teste o Roe v. Wade”, afirmou em 2019 Clarke D. Forsythe, advogado do grupo anti-aborto Americanos Unidos pela Vida. Dada a actual maioria conservadora 6-3 do Supremo, o objectivo é que estes estados conseguiam efectivamente anular a decisão dos anos 70.

Esta mesma maioria não agiu perante um recurso de emergência que a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) e a Planned Parenthood – uma ONG que fornece cuidados de saúde reprodutiva, incluindo abortos – apresentaram na terça-feira para bloquear a lei. O Supremo ainda pode bloquear a lei mais tarde, mas por enquanto já entrou em vigor.

Ontem, a ACLU confirmou que o tribunal “não tinha respondido” ao pedido, afirmando que “o acesso a quase todos os abortos foi cortado para milhões de pessoas”. O grupo explica que cerca de 90% de todos os abortos no Texas acontecem depois das seis semanas e que esta nova lei é “flagrantemente inconstitucional”, pode ler-se na BBC.

A Planned Parenthood também condenou a legislação no Twitter. “Saibam isto: não importa o que acontecer, não vamos desistir e ainda estamos a lutar. Toda a gente merece o acesso ao aborto”.

“O aborto é liberdade, é o nosso direito”

Joe Biden também já denunciou a lei como “extrema”, deixando um aviso que pode “prejudicar significativamente” o acesso a mulheres texanas de baixos rendimentos e a minorias raciais.

“E, escandalosamente, (essa lei) delegou aos cidadãos particulares o poder de abrirem processos judiciais contra quem acreditem ter ajudado outra pessoa a conseguir um aborto”, lamentou.

Esta preocupação do presidente dos EUA é partilhada por Amanda Williams, directora executiva do grupo de apoio ao aborto Lilith Fund, que tentou bloquear a lei. “O acesso ao aborto vai ser um caos absoluto. Infelizmente, muitas pessoas que precisam do procedimento não vão poder fazê-lo. A medida vai obrigar a maioria dos pacientes que têm recursos a sair do Estado para o procurar”, afirma ao The Guardian.

As mulheres texanas que queiram fazer uma IVG terão agora de fazer uma viagem média de 400 quilómetros para outros estados, segundo a estimativa do Instituto Guttmacher.

A medida já motivou mais protestos de activistas pelos direitos das mulheres em várias cidades texanas, como Houston ou Austin. “O aborto é importante para todos nós. É liberdade, é o nosso direito. Proibições fora dos nossos corpos. O meu corpo é meu”, gritaram as manifestantes.

Os activistas anti-aborto defendem que a nova lei proíbe a interrupção da gravidez depois da detecção do batimento cardíaco do feto, mas as autoridades médicas afirmam que este argumento é enganador.

O Colégio Americano de Obstretas e Ginecologistas afirmou o termo “lei do batimento cardíaco” é enganador e que o está a ser detectado nesta fase é “uma porção de tecido fetal que se vai transformar no coração à medida que o embrião se desenvolve”.

No entanto, há quem aplauda a nova lei. “O aborto não é um cuidado de saúde. Queremos que todas as vidas vulneráveis protegidas, desde os pré-nascidos, até aos pacientes frágeis”, afirmou Rebecca Parma, legisladora sénior na ONG Texas Direito à Vida.

“Hoje é um dia incrível para o Texas. Estamos aqui todos os dias para ajudar as mulheres a escolher a vida, e hoje a lei vem ajudar-nos a fazer isso”, afirma Catherine Nix à BBC, directora executiva da Coligação para Vida na cidade de San Antonio, que fala com mulheres em clínicas para as tentar convencer a escolher alternativas ao aborto.

A nova lei do Texas pode ser apenas o primeiro passo na reversão do direito ao aborto nos EUA – mas o processo promete ser polémico, com protestos e batalhas judiciais.

Adriana Peixoto, ZAP //

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