O cientista chinês He Jiankui que anunciou ao mundo ter criado os primeiros bebés geneticamente modificados não só não terá conseguido torná-los imunes ao VIH, como pretendia, como terá provocado “mutações imprevisíveis” no genoma das crianças. Estas conclusões resultam da análise à pesquisa original do cientista.
Em 2018, He Jiankui causou burburinho mundial depois de ter anunciado a criação dos primeiros bebés geneticamente manipulados, numa experiência onde teria alterado o ADN das gémeas Lulu e Nana para as tornar imunes a uma possível infecção futura por VIH. Mas, ao que agora se revela, não só terá falhado esse objectivo, como terá provocado “mutações imprevisíveis” no genoma das gémeas.
O MIT Technology Review, conceituada publicação científica, revelou excertos da que será a investigação original do cientista chinês e que apontará para o falhanço da experiência. Essa investigação nunca foi aceite para publicação e inclui várias referências ao alegado “sucesso” do “avanço médico” no “controle da epidemia de VIH”, mas “faz poucas tentativas de provar que as gémeas são realmente resistentes ao vírus”, aponta a publicação do MIT. “E o texto ignora amplamente dados de outras partes do artigo, sugerindo que a edição correu mal”, acrescenta-se.
“Uma falsidade deliberada”
Especialistas na área de embriologia e de edição de genes que foram confrontados com a pesquisa, consideram que as alegações feitas por He Jiankui não são suportadas pelos dados da sua própria investigação.
“O estudo mostra que a equipa de pesquisa falhou na reprodução da variante prevalecente CCR5″, explica o cientista de edição de genoma Fyodor Urnov, da Universidade da Califórnia (EUA), citado pelo MIT Technology Review.
Urnov refere-se à mutação que confere resistência ao VIH. Há pessoas que nascem com imunidade ao vírus devido a essa mutação num gene chamado CCR5, o gene que He Jiankui alegou ter editado utilizando a técnica conhecida por CRISPR.
“A alegação de que reproduziram a variante prevalecente CCR5 é uma deturpação flagrante dos dados reais e só pode ser descrita por um termo: uma falsidade deliberada“, salienta Fyodor Urnov.
Mais grave do que ter falhado o objectivo de resistência ao VIH, o problema é que a manipulação genética efectuada criou “novas mutações”, cujas consequências não se podem prever, como destacam os especialistas que analisaram a investigação.
Após as edições genéticas efectuadas, “nenhum dos embriões” ficou com a alteração que causa imunidade ao VIH e, ao invés, “ficaram com novas variações, cujos efeitos não são claros”, alerta o professor de Direito da Universidade de Stanford (EUA), Hank Greely, também em declarações ao MIT Technology Review.
“Não temos nenhuma, ou quase nenhuma, prova independente de nada reportado neste trabalho”, acrescenta Hank Greely, concluindo que, “dadas as circunstâncias deste caso” não está disposto a conceder a He Jiankui “a habitual presunção de honestidade”.
Os cientistas que avaliaram a pesquisa questionam, inclusive, a vontade dos pais das gémeas em participarem na experiência, admitindo que podem ter aceite para poderem ter “acesso a um tratamento de fertilidade”. O pai era seropositivo e na China, as pessoas com o VIH “não têm acesso a tratamentos de fertilidade”, como repara a endócrinologista reprodutiva Jeanne O’Brien, outra das especialistas que avaliou o trabalho de He Jiankui. “O contexto social em que o estudo clínico foi realizado é problemático e visou um grupo de pacientes vulnerável”, acrescenta, questionando se o casal estaria “livre de coerção indevida”.
As críticas gerais ao trabalho científico são quase consensuais, com Fyodor Urnov a acusar o cientista chinês de “varrer para debaixo do tapete” os detalhes inconvenientes que não iam ao encontro dos seus objectivos, para “seguir em frente de qualquer maneira”.
O paradeiro de He Jiankui é desconhecido desde que a China anunciou a abertura de uma investigação ao cientista.