Num famoso cartoon de Peter Steiner publicado em 1993 na The New Yorker, que satirizava com o anonimato na internet, dizia um cão a outro: “Na internet, ninguém sabe que és um cão”. Mas 20 anos depois, todo o mundo sabe que somos um cão, de que raça somos, que ração comemos, quem é o nosso veterinário, e o que gostamos de cheirar.
Mesmo o falso anonimato que se dizia existir em 1993 nunca foi real, mas em 2013 o mundo descobriu que já não existe privacidade na internet. As denúncias do Wikileaks, de Julian Assange, e de Edward Snowden, ex-analista da NSA, mostraram que vários programas dos Estados Unidos e de outros países fazem, há muito tempo, vigilância electrónica dos cidadãos em todo o mundo.
Agora, a alteração do protocolo que permite a identificação de cada dispositivo na internet, o chamado Internet Protocol (IP), é uma mudança que deve deixar em alerta os utilizadores da rede.
O Ipv4, padrão actual, que até agora permitiu criar um pouco mais de 4 biliões de endereços diferentes, já é insuficiente para mapear todas as máquinas do planeta – computadores, tablets, smartphones, por exemplo.
O Ipv4 está a ser substituído pelo Ipv6, que permite um número infinitamente maior de endereços – 340 tera (340.000.000.000.000) – abrindo espaço para que cada objecto possa ter o seu próprio endereço na internet.
Ou seja, viabiliza o “IP das coisas“.
Demi Getschko, um dos membros do Comité Gestor da Internet no Brasil, recorda que, no final dos anos 90, já tinha ficado claro que o IPv4 deveria ser extinto, pois não haveria IPs suficientes para tudo no futuro. “Chegamos a 2013 e não se extinguiu, mas vai de fato extinguir-se este ano que vem.”
“Tudo estará ligado, e isso traz coisas boas e coisas más. As boas coisas, de que todos falarão: conforto para todo o mundo e conectividade ampla. Coisas má? Privacidade em alto risco. Tudo que você faz pode ser conhecido. Tudo o que os seus equipamentos fazem entre si poderá ser passado a outros equipamentos. São coisas complicadas. A nossa privacidade pode estar em risco”, alerta Getschko.
De acordo com Gestschko, com a nova geração de IPs, um televisor, por exemplo, poderá estar ligado ao fabricante e, quando avariar, poderá ser reparado remotamente. Mas, por outro lado, não se sabe o que o fabricante fará com os dados recolhidos, como as suas preferências, os seus programas e horários, entre outras possibilidades.
Getschko, que é considerado um dos precursores da internet do Brasil, é de opinião que, se não houver limites, por ser uma rede técnica, a internet permitirá que se vasculhe a vida de qualquer um.
“As pessoas que não gostam do IPv6 dizem que agora todo o mundo terá um endereço fixo, todos saberão o que cada um faz. Eu também tenho uma impressão digital, que é fixa e também não a posso trocar. Porém, isso não quer dizer que ela possa ser recolhida por todo o mundo”, diz o cientista, para quem “a tecnologia pode ser invasiva, mas a lei tem que impedir isso.”
No futuro que já está a acontecer, a Lei terá que impedir o nosso frigorífico de enviar para o hipermercado a nossa lista das compras sem que o saibamos. O problema é quando é a Lei que pergunta ao frigorífico o que lá temos guardado.
AJB, ZAP / ABr