É o fim de uma manhã quente de sexta-feira, faltam três dias para o 13 de Maio. No Largo da Basílica, o sol bate quase a pique sobre algumas dezenas de pessoas — uns peregrinos, outros turistas. E há quem tenha vindo esperar os seus.
Uma jovem mãe chama pelos filhos pequenos, um casalinho que espalha alegria em correrias pelo Largo da Basílica. “Vá, venham para aqui, que o papá está a chegar”.
Mas o pai vai tardar um pouco mais. Faz parte de um grupo de 170 peregrinos que termina por fim a sua peregrinação de sete dias. Partiram do norte do país, fizeram mais de 200 quilómetros.
Alguns já estão às portas do Santuário, esperam pelos mais atrasados. A última etapa, 12 quilómetros, foi a mais curta, mas é sempre a mais emotiva.
Sentada num pequeno muro, Lourdes, 80 anos, não tira os olhos da entrada norte do Santuário, junto à moderna Basílica da Santíssima Trindade.
“Dona Lourdes, que veio aqui fazer hoje a Fátima?”, perguntámos-lhe. “Vim por devoção, por fé. E vim esperar os meus filhos, que chegam hoje de peregrinação”, diz a antiga professora primária, residente na Maia.
É quase meio dia quando os peregrinos chegam. Entram no Santuário com uma rosa na ponta de uma cana, em fila, dois a dois — ou três, quando alguém mais combalido precisa de ombros amigos para conseguir dar os últimos passos.
A abrir o desfile, porta-estandartes do Grupo Dramático e Recreativo da Retorta, a associação de Campo, Valongo, que organizou a peregrinação, e um antigo comando portuense, que vem a marchar, fardado a rigor, transportando o símbolo de Nossa Senhora de Fátima que acompanhou o grupo durante toda a peregrinação.
É difícil conter as emoções. Os familiares aproximam-se do grupo, mas a peregrinação só termina na Capelinha das Aparições, os abraços sentidos têm que esperar mais um pouco. “Quando vi os meus filhos, até senti as lágrimas a chegar-me aos olhos”, diz Lourdes.
O grupo faz uma roda à volta da Capelinha, para um momento de oração. Por fim, termina a peregrinação — Chamados ao Encontro, de seu nome.
Os peregrinos cumprimentam-se, com a emoção de terem ultrapassado todas as dificuldades e alcançado o seu propósito, e despedem-se — alguns, até para o ano. O grupo dispersa, é hora do reencontro com a família e de regressar a casa.
Viemos de volta ao Porto com a dona Lourdes e os filhos, Rui e Manuela. “Rui, onde vamos almoçar?”. Passa das duas da tarde, a pergunta impunha-se.
“Ao Manjar, claro”, responde o mais velho da dona Lourdes. O Manjar do Marquês, na Estrada Nacional 1, a poucos quilómetros de Pombal, é ponto de paragem para muitos dos peregrinos que chegam a Fátima vindos do norte, ou que para lá voltam.
O almoço foi tempo de contar histórias.
É a terceira peregrinação de Rui a Fátima, a segunda que completa. “A primeira vez, em 2017, tive um problema muscular, tive que voltar para trás ao chegar à Mealhada. Depois voltei em 2018”, recorda.
Rui, médico em Guimarães, partiu de casa oito dias antes, pelas 5 da manhã de sexta-feira. Fez um primeiro percurso, de 46 quilómetros, até Águas Santas, onde se juntou à irmã. Manuela faz também a peregrinação pela terceira vez. “Fiz a primeira em 2016, a segunda o ano passado”.
No sábado, juntaram-se no Porto ao grupo da Retorta e puseram pés a caminho, numa percurso que os levou por Fiães, Albergaria, Mealhada, Condeixa, Pombal, Arrabal e finalmente Fátima. Mais 210 km, a maior parte (literalmente) por estradas nacionais.
“Os automobilistas queixam-se muitas vezes de que os peregrinos andam pela estrada, quando até têm passeios. Mas não compreendem. Os passeios são irregulares, quando temos dezenas de quilómetros nas pernas, qualquer esforço extra para subir ou descer o passeio, é duro“, explica Rui. “E nós não vamos pela estrada, vamos nas bermas”, esclarece Manuela.
“Era mais fácil este percurso ser feito em menos um dia. Mas é muito mais bonito chegar ao fim da manhã do que às seis, sete da tarde, com o cansaço acumulado de uma etapa mais longa”, conta Rui.
O que vos leva a fazer uma peregrinação destas? O que vos motiva?
“Esta em particular foi um bocado um desafio da minha irmã. Gosto de fazer caminhadas, é bom, é um momento em que tu te libertas completamente das tuas preocupações. Mas é também o desafio, a necessidade de superação. A fé ajuda-nos a decidir fazer a peregrinação, o sentimento de superação ajuda-nos a terminá-la”, explica Rui.
“A devoção é importante. Num grupo de 170 pessoas, a fé é a motivação comum, é o que nos leva a Fátima. Mas há sempre outros motivos. Para mim, caminhar dá-me tempo para pensar, relaxar, liberta-me. E a sensação de ter superado um desafio como este é inigualável”, confirma a irmã.
Num grupo de 170 pessoas, encontramos muitas motivações diferentes?
“Num grupo de 170 pessoas? 170 razões diferentes“, diz Manuela. “Cada um leva a sua, todos têm um motivo diferente. Há quem venha só acompanhar um familiar ou amigo, até pode haver quem venha só para ver como é, deixa cá ver se eu consigo. Cada um tem o seu motivo, é uma questão muito pessoal“, acrescenta.
“Mas ninguém se mete nisto se não tiver lá a semente da Fé. E quando as coisas começam a correr mal, o querer continuar, querer superar, acho que tem que haver ali uma devoção”, diz Manuela.
“Mas há uma coisa”, acrescenta Rui. “Quem não vem com um objetivo, normalmente não acaba, porque à primeira dificuldade, tu cedes. Contaram-me que ainda o ano passado, a 40 km de Fátima, uma pessoa desistiu porque fez uma bolha”.
“Este ano, houve uns seis que desistiram. Mas houve pessoas que chegaram ao Santuário, que nós ao segundo dia começámos a vê-las e ui, como é que vão fazer isto. Mas chegaram”, diz Manuela.
Como é que se juntaram a este grupo?
“A peregrinação é organizada pelo Grupo Dramático e Recreativo da Retorta, que todos os anos leva um grupo a Fátima. A maior parte são da freguesia, mas podemos pedir para nos juntar sem o ser”, explica Rui.
Numa peregrinação como esta, fazem-se amigos para a vida?
“É assim, num grupo de 170, há todo o tipo de pessoas, de todas as idades, dos 20 e poucos aos 70. Ainda ontem, havia uma senhora que fazia 70 anos”, diz Rui.
“Mas tens 170 pessoas, 170 egos. Há um ou outro que não sabe estar, mas há muitas boas pessoas, educados, com quem consegues criar empatia. Há umas 6 ou 7 pessoas com quem mantive contacto desde o ano passado”, conta Manuela.
Come-se bem, no Manjar do Marquês. Ninguém resiste ao apelo do seu arroz de tomate. “Numa peregrinação de sete dias, sete duras etapas, o que se come? E onde dormiram?”.
“No fim de cada etapa ficamos normalmente em pavilhões cedidos pelas autarquias. Dormimos no chão, em sacos-cama. Isto obriga-te a sair da tua zona de conforto, a adaptar-te, a perceberes que as coisas funcionam na mesma, que continua tudo bem”, conta Rui.
“A água do banho às vezes é fria, é o que há. No fundo, tens que vir despojado, tens que pensar que o importante não és tu, é o grupo”, acrescenta a irmã.
“A comida é o melhor. Todos os dias, há uma senhora que tem um restaurante em Valongo, que vem numa carrinha trazer-nos o almoço e jantar; há sempre uma sopa quente, e um prato que seja fácil de comer — tipo feijoada, massa à lavrador, arroz com moelas, panados, ou filetes, tudo comida de conforto, e fruta. Não sei como fazem, mas a comida faz estes quilómetros todos, e chega quentinha“, diz Manuela.
“A sopa chega a ferver!”, confirma Rui.
“Houve uma empresa que nos ofereceu 400 bolas de Berlim, dava duas para cada, outros ofereceram natas, fogacinhas”, contam os dois irmãos. “Mas comemos de tudo um pouco, coisas que nem sabíamos que existiam”.
“E é assim, numa peregrinação destas, uns andam mais depressa, outros mais devagar. Mas no nosso grupo, ninguém começa a almoçar sem chegar a última pessoa. Às vezes, esperamos umas duas horas para começar”, conta Manuela, orgulhosa. “Ontem chegámos ao sítio do almoço às 11.30, começámos a comer à uma e meia”.
“Também quando chegamos ao pavilhão ninguém começa a jantar sem que todos os que precisam tenham recebido tratamento do massagista ou do podologista”, acrescenta.
Quanto custa fazer a peregrinação num grupo destes? “Neste caso, 195 euros, tudo incluído. Se ficássemos em hotéis, talvez fosse bastante mais”, diz. “No nosso caso, garantem diariamente o pequeno almoço, a meio da manhã um lanche, o almoço, a meio da tarde um lanche, o jantar, e o alojamento para pernoitar”.
“No dia em que ficamos na Mealhada, o jantar é livre, porque muita gente quer ir comer o seu leitão”, detalha. “O almoço no Pombal também é livre”.
A logística é complicada. “Temos carrinhas de apoio à logística e para nos transportar as malas. Todas as noites, é preciso descarregar para o pavilhão 170 malas e 170 colchões, todas as manhãs é preciso carregar novamente as carrinhas”, conta Manuela.
“Isto não seria possível sem o staff de apoio. Foram cerca de 20 pessoas, todos voluntários, que para mim são o expoente máximo de generosidade e dedicação aos outros, representando valores que hoje estão muitas vezes esquecidos na nossa sociedade”, diz Rui.
Os últimos dias foram quentes, mas a peregrinação começou com um fim de semana frio e muito chuvoso. “O que é pior, muita chuva ou este sol intenso?”
“Como se costuma dizer, no meio é que está a virtude”, diz Manuela. “Tempo fresco, sem chuva, sem demasiado sol, é o ideal”.
“Nesta peregrinação, aprendi um truque. Quando chegamos ao pavilhão para pernoitar, com as sapatilhas ensopadas, metemos-lhes dentro folhas de jornal. Ensopa a água. No dia seguinte, as sapatilhas estão húmidas, mas não estão molhadas, prontas para continuar, e não ficamos doentes”. É o médico a falar.
A sapatilha é o calçado oficial de uma peregrinação?
“Não, há de tudo, cada um traz o seu. Sapatilhas, botas de montanha, há quem venha de chinelos, crocs, sandálias… as sandálias são boas para os dias de chuva, a água sai toda. É o que nos deixar mais confortáveis”, conta Manuela.
Entretanto, o Manjar encheu. Um grupo de peregrinos, camisolas azuis, quase todos de chapéu “australiano” e cajado, fez uma paragem para o almoço, quase no fim da sua penúltima etapa. Falta mais uma para Fátima.
“Este grupo tem muitos homens. Pensei que as peregrinações tivessem quase só mulheres”, comenta dona Lourdes.
“Não”, responde Rui. “Há normalmente tantos homens como mulheres, é muito equilibrado. Há muitos casais que fazem a peregrinação juntos. E é curioso, pensamos que quando vem um casal, foi a mulher que fez alguma promessa, mas muitas vezes foi o homem“.
“Sim, na minha cabeça pensei que a Fé fosse uma coisa mais de mulheres, mas veem-se muitos homens. E jovens!”, diz Manuela. “E sim, nos casais, a gente percebe, há assim uns sinais, de que são eles que vieram”.
Os camisolas azuis vêm em peregrinação organizada pela Fénix Associação da Ronda dos Sem Abrigo. Não é difícil meter conversa. “De onde vieram?”.
“Viemos do Porto. Partimos de Santo Ovídio na segunda-feira, chegamos a Fátima amanhã”, conta João, um dos membros do grupo. “Somos um grupo mais pequeno, de 40 pessoas, mais o motorista do autocarro e dois carros de apoio”.
Parte do grupo ficou na esplanada, visivelmente esgotados, a aplicar creme protetor nas pernas e cara. O sol queima. “Está a custar muito?”.
“Não, nem por isso. Todos nos preparámos. Quer dizer, no meu caso, nem fiz preparação, bastam-me as caminhadas que faço todos os domingos nas rondas de apoio que a Fénix dá aos sem abrigo”, detalha o peregrino.
“Mas está quase, já só falta mais uma etapa. Agora vamos almoçar, depois fazemos mais 9 quilómetros a pé, e o autocarro leva-nos até um hotel para pernoitar. Não podemos sair do hotel. No dia seguinte, o autocarro leva-nos até onde nos apanhou, e fazemos o resto a pé”, explica João.
Todos os caminhos vão dar a Fátima.
E o que é que se sente, no fim de uma peregrinação destas, quando se chega ao Santuário? “Vontade de fazer tudo outra vez“, diz Manuela.
Bem ….Eu não vou a Fatima , e também tenho un motivo diferente ! …………. Não adoro Imagens !