As últimas doze “virgens juramentadas” da Albânia lutam para não ter que ser homens

1

Pero Kvrzica / Flickr

Para Gjystina Grishaj, “a Albânia era um mundo dos homens e a única forma de sobreviver era tornar-se um deles”.

Grishaj morava nas montanhas do norte da Albânia e, com 23 anos de idade, tomou uma decisão que mudaria sua vida: fez um voto de celibato e prometeu viver o resto da vida como um homem.

A família de Grishaj mora na região de Malësi e Madhe, em Lëpushë (norte da Albânia), há mais de um século. O lugar é um profundo vale encravado entre montanhas escarpadas e uma das poucas regiões onde ainda existe a tradição da burrnesha — uma prática centenária na qual as mulheres prestam um juramento aos anciãos da aldeia e vivem como homens.

Essas mulheres são conhecidas como burrneshat — as “virgens juramentadas”.

“Existem muitas pessoas solteiras no mundo, mas elas não são burrneshat“, explica Grishaj, que agora tem 57 anos. “Uma burrnesha dedica-se apenas à sua família, ao trabalho, à vida e a preservar a sua pureza.”

Para estas mulheres, trocar a sua identidade sexual, reprodutiva e social era uma forma de ter liberdades que apenas os homens podiam experimentar.

Tornar-se uma burrnesha permitia que as mulheres se vestissem como homens, atuassem como chefes de família, se movimentassem livremente nas situações sociais e aceitassem trabalhos que, tradicionalmente, eram apenas para os homens.

Gjystina — ou Duni, como é conhecida pelos mais próximos — era uma jovem ativa e atlética, decidida a ser independente. Nunca imaginou ter uma vida tradicional, com casamento, trabalho doméstico ou a usar vestidos.

Em vez disso, após a morte do seu pai, decidiu tornar-se uma virgem juramentada, para poder chefiar a família e trabalhar para a sustentar financeiramente.

“Éramos extremamente pobres… O meu pai morreu e minha mãe tinha seis filhos”, conta Grishaj, que agora gere uma pousada. “Para facilitar a vida dela, decidi tornar-me burrnesha e trabalhar bastante“.

Prática em extinção

Não existem números exatos, mas estima-se que restem apenas 12 burrneshat no norte da Albânia e em Kosovo. Desde a queda do comunismo nos anos 1990, a Albânia tem passado por mudanças que deram mais direitos às mulheres.

Valerjana Grishaj, sobrinha de Gjystina Grishaj, considera que o desaparecimento da tradição das burrneshat é algo positivo.

“Hoje, nós, meninas, não precisamos de lutar para ser homens”, afirma. “Precisamos de lutar por direitos iguais, mas sem nos tornarmos homens.”

Em 2019, a ativista dos direitos das mulheres Rea Nepravishta protestou durante os eventos do Dia Internacional da Mulher em Tirana e saiu às ruas com um grande cartaz estampado com a palavra burrnesha riscada com uma grande cruz vermelha. Embaixo, a expressão “mulheres fortes”.

“No idioma albanês, quando queremos descrever uma mulher como sendo forte, usamos o termo burrnesha”, explica. “É uma palavra composta de duas partes. ‘Burre’ significa homem… Não deveríamos ter de referir os homens para mostrar a força das mulheres.”

Segundo a ONU Mulheres — a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Género e o Empoderamento das Mulheres —, a participação feminina na tomada de decisões políticas e económicas na Albânia progrediu recentemente. Ainda assim, a participação das mulheres permanece limitada e as diferenças salariais não foram combatidas adequadamente. Em 2017, 23% dos parlamentares e 35% dos legisladores locais eram mulheres.

Os dados da ONU Mulheres indicam ainda que quase 60% das mulheres albanesas entre os 15 e 49 anos de idade já sofreram violência doméstica. E o Banco de Dados dos Órgãos de Tratados das Nações Unidas revela que apenas 8% são proprietárias de terras e elas ainda são marginalizadas em questões relativas a heranças.

Estatuto especial

As raízes da tradição das burrneshat originam-se no Kanun, uma antiga constituição adotada em Kosovo e no norte da Albânia no século XV, que organizou a sociedade albanesa. Segundo esta lei patriarcal, as mulheres eram consideradas propriedade do marido.

“Elas não tinham o direito de decidir o seu próprio destino, nem de escolher as suas próprias vidas”, segundo Aferdita Onuzi, etnógrafa que estudou as burrneshat. “Se uma menina fosse ficar noiva, tudo era decidido sem sequer questioná-la; nem a idade em que ela ficaria noiva, nem a pessoa com quem ela ficaria noiva.”

Existem muitos conceitos erróneos que pairam sobre a tradição. Tornar-se uma virgem juramentada, normalmente, não era uma decisão baseada na sexualidade, nem na identidade de género, mas sim num estatuto social especial que era oferecido a quem fizesse o juramento.

“A decisão de uma menina de se tornar virgem juramentada não tem nada a ver com a sexualidade”, segundo Onuzi. “É simplesmente uma escolha de ter outro papel, outra posição na família.”

Mas tornar-se uma burrnesha também era uma forma de escapar de um casamento arranjado, sem desonrar a família do noivo. “Esta decisão significava que elas poderiam evitar um conflito sangrento entre duas famílias”, afirma Onuzi.

As regras que regiam os conflitos sangrentos haviam sido codificadas há muito tempo no Kanun, que ajudava a trazer ordem para a vida das tribos do norte da Albânia, particularmente durante a sua incorporação no Império Otomano.

Segundo a lei do Kanun, os conflitos sangrentos eram uma obrigação social para proteger a honra. Podiam começar com ações pequenas como ameaças e insultos, mas, às vezes, poderiam intensificar-se até um assassinato. A família da vítima poderia então procurar justiça, matando o assassino ou outro homem da família da parte culpada.

Para muitas jovens daquela época, o juramento do celibato evitava os conflitos sangrentos. “Era uma forma de escapar“, segundo Onuzi.

As tradições evoluíram ao longo do tempo, transformando as decisões forçadas em escolhas ativas.

“É muito importante observar a diferença entre as burrneshat clássicas, no sentido etnográfico, e as burrneshat atuais… Atualmente, é uma decisão totalmente pessoal“, explica Onuzi.

Gjystina Grishaj não foi obrigada a tornar-se burrnesha — ela própria decidiu. Ao crescer na Albânia comunista, percebeu que os homens, na época, tinham muito mais liberdade.

“Havia muitos momentos em que era considerada desigual“, ela conta. “As mulheres eram muito isoladas, limitadas às tarefas domésticas e não tinham direito a falar.”

A sua família — particularmente a sua mãe — reprovou a decisão, preocupada porque a filha estava a sacrificar a sua possibilidade de ser mãe e ter a sua própria família. Mas, para Grishaj, o sacrifício foi recompensado. “Quando decidi tornar-me burrneshat, ganhei mais respeito“, conta.

ZAP // BBC

1 Comment

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.