Tiros, ocupações e parlamento dissolvido. Há golpe de Estado na Guiné-Bissau?

Andre Kosters / EPA

Umaro Sissoco Embalo, Presidente da Guiné-Bissau

Libertação de dirigentes do Governo, detidos por suspeitas de corrupção, gerou confrontos armados entre a Guarda Nacional e o batalhão da Presidência. É golpe de Estado, garante Embaló: “toda a gente que está implicada nesta tentativa vai pagar caro.”

O Presidente da Guiné-Bissau decidiu esta segunda-feira, após reunião do Conselho de Estado, dissolver o parlamento na sequência dos confrontos de quinta e sexta-feira entre forças de segurança, que considerou tratar-se de um golpe de Estado.

Umaro Sissoco Embaló considerou “um golpe de Estado” o facto de a Guarda Nacional ter retirado o ministro das Finanças, Suleimane Seide, e o secretário de Estado do Tesouro, António Monteiro, das celas da Polícia Judiciária, na noite de quinta-feira.

Os dois são dirigentes do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que lidera a coligação PAI-Terra Ranka, no Governo, juntamente com o Partido da Renovação Social (PRS), Partido dos Trabalhadores da Guiné (PTG) e mais cinco pequenas formações políticas e haviam sido detidos a 30 de novembro no âmbito de um processo relacionado com pagamentos de cerca de 10 milhões de dólares (9,1 milhões de euros) a 11 empresários, segundo fontes judiciais. O banco foi quem concedeu o crédito de seis mil milhões de francos CFA (cerca de 10 milhões de dólares) ao Governo para pagar a dívida a 11 empresários.

A oposição — Madem G15 e a Assembleia do Povo Unido – Partido Democrático da Guiné-Bissau (APU – PDGB) —, que denunciou o caso no parlamento, defende tratar-se de crime de prevaricação e desrespeito por normas orçamentais.

Logo após a denúncia do caso, o Ministério Público efetuou buscas e apreendeu documentos no Ministério da Economia e Finanças e ainda no banco que concedeu o crédito para o pagamento aos empresários.

O ministro das Finanças confirmou ter solicitado um empréstimo de seis mil milhões de francos CFA a um banco comercial para pagar a dívida aos empresários. Seide disse ser um processo legal e que todos os governos da Guiné-Bissau o fazem.

Tiros ouvidos em Bissau

Na sequência da libertação dos dois detidos — que entretanto já foram reconduzidos de volta para a prisão — pelas mãos da Guarda Nacional, geraram-se confrontos armados entre a Guarda Nacional e o batalhão da Presidência. Os tiros de armas ligeiras e pesadas ecoaram por toda a cidade de Bissau e partiam das imediações do quartel no bairro de Luanda e de outras instalações da Guarda Nacional.

A coligação no Governo acusou o batalhão presidencial de estar a fazer um uso “desproporcional e despropositado” da força. É “um golpe de força da Presidência da República contra a Guarda Nacional que simplesmente havia protegido a vida de dois membros do governo”, disse à Lusa uma fonte da Coligação Plataforma Aliança Inclusiva (PAI).

Os confrontos foram resolvidos com a intervenção da Polícia Militar e que resultou na detenção do comandante da Guarda Nacional, Vitor Tchongo, e de “mais alguns soldados”.

Televisão e rádio estatais ocupadas por militares armados

Após o anúncio da dissolução, a televisão e a rádio estatais do país foram esta segunda-feira ocupadas por “militares fortemente armados” e os funcionários expulsos das instalações, disseram à Lusa fontes daqueles órgãos de comunicação social.

Fonte da Televisão da Guiné-Bissau (TGB) disse à Lusa que, “por volta das 14:00”, chegaram às instalações “carrinhas de caixa aberta com militares fortemente armados e encapuçados”.

A fonte especificou que “perguntaram pelo diretor-geral, a quem pediram as chaves do gabinete e dos carros” e que mandaram o responsável “sair da televisão”. Disse também que “o diretor-geral entregou as chaves e saiu”, tendo ainda mandado “recolher as chaves das viaturas, que entregou aos militares”.

De acordo com os relatos, os militares terão mandado, “momentos depois, ligar a emissão da TGB, mas já sem o diretor nas instalações, que entretanto, tinha ido embora para a sua casa”. Neste momento, a emissão da TGB está no ar, mas apenas com música.

Situação idêntica foi relatada à Lusa por fonte da Radiodifusão Nacional (RDN Guiné Bissau), onde “quando o noticiário estava no ar, entrou nas instalações da Rádio um grupo de militares armados”.

“Pediram-nos que parássemos com o noticiário e parámos. Ordenaram-nos que saíssemos da rádio e saímos”, indicou a fonte, acrescentando que foi dito aos funcionários que “a rádio vai fechar até segunda ordem”.

“O teatro acabou”. Presidente diz que golpe não é de agora

“Esta tentativa de golpe de Estado terá consequências pesadas”, afirmou o presidente Embaló, à chegada ao aeroporto de Bissau. “O teatro acabou”, insistiu o chefe de Estado, frisando que “toda a gente que está implicada nesta tentativa vai pagar caro”.

Sissoco Embaló disse ainda que “há indícios”, incluindo escutas telefónicas, de que “esse golpe” não é de agora, que “foi preparado antes de 16 de novembro”, o dia da comemoração oficial dos 50 anos da independência da Guiné-Bissau, organizada pela Presidência da República.

O presidente considera que o comandante da Guarda Nacional, Vítor Tchongo, que foi preso na sexta-feira, agiu “a mando de alguém” quando foi às celas da Polícia Judiciária retirar os dois governantes para os levar para o quartel. “Tchongo não é maluco até ao ponto de ir rebentar as instalações da Polícia Judiciária”, afirmou.

O chefe de Estado guineense insistiu que “não se faz golpe ao presidente da Assembleia, nem ao primeiro-ministro, só se faz ao chefe de Estado, que é comandante supremo das Forças Armadas”. Sissoco evocou a frase do antigo presidente guineense Kumba Yalá, “vivemos em paz ou morremos todos”, e disse “é dessa vez”.

O presidente da República defendeu que “o império da lei tem que funcionar na Guiné-Bissau” e disse que se a Procuradoria-Geral da República deixar de ser o advogado do Estado, ele próprio está “disponível para fazer isso” e evitar que o país caia “num colapso”.

Sissoco Embaló afirmou que “todos sabem quem são” os autores do “golpe”, referindo a seguir que “não há casa de ninguém atacada”, numa alusão à denúncia do presidente da Assembleia Nacional Popular, Domingos Simões Pereira, de que a residência tinha sido cercada e alvejada, com o próprio em casa.

Dissolução é “violação grosseira” da Constituição

A dissolução do parlamento decretada pelo Presidente da República da Guiné-Bissau é “uma violação grosseira da Constituição”, na opinião da Liga Guineense dos Direitos Humanos, que condenou a decisão presidencial.

Em comunicado, a direção nacional da Liga salienta que “nos termos do nº1 do artigo 94° da Constituição da República da Guiné-Bissau, a Assembleia Nacional Popular não pode ser dissolvida nos 12 meses posteriores à eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou de emergência”.

Também o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia classificou a decisão do Presidente guineense de dissolver o parlamento como “inconstitucional, inválida e sem força jurídica”.

“Eu julgo que a decisão do Presidente da República [da Guiné-Bissau] não é correta. É uma decisão inconstitucional, porque viola o artigo 94.º da Constituição. O artigo diz que o parlamento não pode ser dissolvido no período de um ano após a sua eleição”, afirmou à agência Lusa Bacelar Gouveia.

“A atual legislatura começou com a eleição, que foi em junho. Ainda não se completou um ano. Portanto, a Constituição impede, proíbe, o Presidente da República de dissolver o Parlamento e, portanto, assim sendo, o ato presidencial é um ato inválido e não pode produzir efeitos jurídicos”, reiterou.

ZAP // Lusa

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