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Odair não tinha faca, confirmam agentes e imagens. 20 minutos depois, apareceu um punhal

António Pedro Santos / Lusa

Agente que matou Odair admitiu não ter sido ameaçado com faca. Patrulha que o acompanhava só viu uma faca mais tarde e gestor da cena do crime revela “estranhos” factos: ou o punhal estava bem escondido, ou foi “colocado por terceiros”.

Há novos detalhes — e cada vez mais incongruências — em volta da morte de Odair Moniz.

O agente da PSP que matou Odair Moniz admitiu à PJ que não foi ameaçado com uma arma branca, ao contrário do que descreveu no dia em que baleou o cozinheiro de 43 anos no auto de notícia que o Ministério Público (MP) acredita ter sido falsificado.

O agente, acusado de homicídio do cabo-verdiano, descreveu de forma diferente à Judiciária o que aconteceu na madrugada de 21 de outubro na Cova da Moura, Amadora e já terá apresentado “três versões diferentes” do que realmente aconteceu.

Os factos ficam ainda mais distorcidos com os testemunhos do agente que acompanhava o polícia que baleou Odair e do gestor da cena de crime chamado ao local. O segundo patrulha, ouvido como testemunha, “não viu qualquer arma branca”: só viu um punhal quando o corpo de Odair Moniz foi rodado pelos elementos do INEM, mais tarde.

Além disso, o gestor da cena do crime, um dos primeiros a chegar ao local, diz não ter visto qualquer objeto junto à vítima, mas 20 minutos depois de se afastar de Odair, voltou a este e encontrou um punhal junto ao cabo-verdiano. Vamos por partes.

O que o agente escreveu no auto

No auto elaborado às 14:55, o agente descreve com detalhe o que terá acontecido desde o início da perseguição até à chegada do INEM. Nele, refere que Odair terá tentado agredir os agentes, que lhes terá tentado tirar o bastão e que terá insultado os dois homens.

Em relação à arma branca, o agente conta no auto que Odair Moniz colocou a mão na cintura e levantou a camisola com a intenção de agarrar um objeto que parecia ser uma arma branca. Terá sido nessa altura que viu um objeto semelhante a uma lâmina de uma faca, supondo, por isso, que se tratava de uma faca. O agente referiu, no entanto, que não conseguia dar mais detalhes sobre a faca.

Depois de ter percebido que se tratava de uma arma branca, o agente disse que Odair levantou o braço que segurava a faca, baixando-o na sua direção. Nesse momento, o polícia protegeu-se com o antebraço, recuou ligeiramente e disparou duas vezes para a linha da cintura apenas com o propósito de neutralizar Odair Moniz e com a certeza de que o objetivo de Odair era atingi-lo mortalmente na cabeça com a dita faca, relatou.

“Três versões diferentes”

Esta informação foi enviada para a Polícia Judiciária no mesmo dia em que o agente foi interrogado. Mas aos inspetores da PJ, o agente poupou muitos dos detalhes dados no auto e explicou que, depois da perseguição policial, que terminou dentro do bairro da Cova da Moura, Odair terá oferecido resistência e que também os terá agredido.

Sobre a existência de uma faca, disse apenas ter visto numa das bolsas que Odair usava à cintura um objeto parecido com uma lâmina de uma faca e que Odair terá tentado alcançar a faca.

O agente disse que temeu pela sua vida e pela vida do agente que o acompanhava e que, além dos dois disparos feitos para o ar, fez dois disparos na direção de Odair Moniz, mas que tentou direcionar a arma para baixo, para evitar a sua morte.

Bruno Pinto, agente da PSP e autor dos quatro disparos nessa noite fatal, já terá apresentado “três versões diferentes” do que aconteceu: disse à PJ que só viu a algo que parecia uma faca; a dois colegas, terá dito que Odair o tentou atacar com a faca e a três agentes, seus superiores, não mencionou qualquer ataque, nem sequer a existência do dito punhal, segundo a PJ.

Segundo agente “não viu qualquer arma branca”: só viu mais tarde

No mesmo dia, a PJ ouviu ainda como testemunha o outro polícia que acompanhava o agente que baleou Odair naquela noite, que disse que os dois foram agredidos, mas não confirmou a existência de uma tentativa de agressão com faca, tal como consta no auto.

Este polícia avançou ainda não ter visto o primeiro disparo feito na direção de Odair Moniz, uma vez que estava a apanhar o seu rádio do chão, que tinha caído, e disse à Polícia Judiciária que “não viu qualquer arma branca” no interior das bolsas que Odair levava à cintura, revistadas por si depois de o cabo-verdiano ter sido baleado.

O mesmo agente terá dito que só viu um punhal quando o corpo de Odair Moniz foi rodado pelos elementos do INEM, que foram chamados ao local e que transportaram o homem para o hospital.

Além disso, testemunhas indicaram que nunca viram a vítima portar uma arma branca e o MP já tinha avançado que não foram detetados “vestígios biológicos” ou impressões digitais na arma apreendida no local.

Não havia arma e, 20 minutos depois, apareceu uma faca

Designado gestor da cena do crime, o agente principal da PSP foi um dos primeiros a chegar ao local. Em depoimento à PJ, este agente afirmou não ter visto qualquer objeto junto à vítima no momento da sua chegada. No entanto, vinte minutos depois de se afastar para fazer comunicações, ao regressar, encontrou um punhal de 25 centímetros no chão junto ao corpo de Odair.

Quando falou com Bruno Pinto, este “nada mencionou sobre uma arma branca”, segundo o relatório final da PJ citado pelo Expresso.

O polícia confessou aos inspetores que era “estranho” não ter visto a arma antes: “o punhal estaria ocultado no interior de uma das bolsas encontradas ou foi lá colocado por terceiros”.

Imagens de videovigilância desmentem agente

Ainda segundo o auto, os dois disparos que mataram Odair foram feitos um a seguir ao outro e o primeiro não terá visado a vítima, uma vez que este não terá alterado o seu comportamento. Esta informação, no entanto, é desmentida pela acusação do Ministério Público, que alega, com base na autópsia feita, que a morte de Odair Moniz foi provocada pelo primeiro tiro.

Em relação aos tiros, o agente acrescenta no auto que só com o segundo tiro é que Odair Moniz caiu no chão e que nessa altura foi possível ver o punhal que Odair largou quando caiu e que correspondia ao objeto que o agente viu Odair tirar da bolsa.

Outra informação desmentida pela acusação refere-se à localização de Odair e do agente: o auto refere que Odair estava em cima do agente quando foi disparado o primeiro tiro e a acusação, que se baseia nas imagens de videovigilância, descreve que os dois estavam a uma distância entre os 20 e os 50 centímetros.

Até agora, os agentes que se deslocaram ao local contam versões distintas sobre a existência e posição da faca. Aliás, o próprio advogado de Bruno Pinto negou que este tenha escrito no auto que Odair empunhava uma faca e a PSP mudou a sua versão dos factos dias depois de dizer que uma tentativa de agressão com um punhal justificou o recurso a arma de fogo.

Sobre o auto da PSP, o Ministério Público determinou a extração de certidão para investigar a alegada falsificação do documento, elaborado no âmbito da morte de Odair Moniz.

Na semana passada, o Ministério Público deduziu acusação contra o agente da PSP, acusado de homicídio, e defendeu que Odair Moniz tentou fugir da PSP e resistir à detenção, mas nunca descreve qualquer ameaça com recurso a arma branca.

O Ministério Público indica não ter encontrado provas de que Odair Moniz tenha utilizado uma faca para ameaçar os dois agentes, na madrugada de 21 de outubro de 2024.

O MP aponta “incongruências e inexatidões” no caso, e “uma das suspeitas que existe é, desde logo, quanto à autoria” do auto de notícia. Isto porque o auto terá sido elaborado às 14:55 do dia do incidente pelo agente da PSP que disparou sobre Odair — apesar de o mesmo agente, “nessa data e hora” estar “sujeito a interrogatório pela Polícia Judiciária, diligência que se iniciou pelas 14:40 e terminou pelas 18:00 do dia 21 de outubro de 2024 e teve lugar na DLVT [Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo] – PJ, em Lisboa”, lê-se na acusação.

Tomás Guimarães // Lusa

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