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O físico dos jogadores de futebol evoluiu nos últimos anos. Estaremos perante uma nova modalidade?

Alberto Estevez / EPA

Em dezembro de 2019, Cristiano Ronaldo protagonizou um lance que entrou para a história por desafiar o que muitos entendiam ser as leis da física.

Numa bola cruzada durante a partida entre Juventus e Sampdoria pelo Campeonato Italiano, ele saltou 71 centímetros e alcançou 2,56 metros de altura para cabecear a bola e fazer um gol decisivo.

O atacante português talvez seja um dos principais exemplos de como o futebol mudou: atualmente, esse desporto demanda um preparo físico e uma força muscular muito superiores ao que era exigido há poucas décadas. “Quem pratica futebol profissional hoje não é apenas jogador. Precisa ser um atleta de ponta”, compara o fisiologista Orlando Laitano, professor da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.

“A capacidade de correr, de saltar e de fazer movimentos com o corpo se aproxima cada vez mais de atletas olímpicos que treinam especificamente uma dessas habilidades em específico”, acredita.

Mas o que aconteceu para o desporto mudar tanto em poucas décadas? Por trás dessa verdadeira revolução, está o avanço no conhecimento de fisiologia e preparo físico. O médico Paulo Zogaib, atual coordenador da medicina desportiva do Esporte Clube Pinheiros, em São Paulo, lembra como os jogadores de antigamente tinham tempo para pensar o que fariam com a bola.

“Se assistirmos a um jogo dos anos 1970, é possível conferir que os médios como o Gérson recebiam a bola, pensavam, ficavam com ela nos pés por vários minutos até que algum adversário se aproximasse”, descreve. Hoje, cada centímetro do campo é disputado e ocupado pelos 22 atletas que estão ali.

“Antigamente, o guarda-redes só passava do meio de campo em raríssimas ocasiões. O lateral praticamente não ia para o ataque. E o ponta de lança pouco saía da área adversária”, informa o especialista, também professor aposentado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do Palmeiras durante 25 anos. “Atualmente, os guarda-redes iniciam as jogadas, os laterais precisam ir da defesa ao ataque frequentemente, os pontas de lança são responsáveis por iniciar a marcação…”, exemplifica.

O fisiologista Bruno Gualano, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), destaca que até os guarda-redes modernos participam mais da dinâmica de jogo. “Em tese, o guarda-redes era quem se movimentava menos. Mas as equipes de hoje exigem que eles saiam da área e joguem com os pés”, acrescenta.

Por trás de tudo isso, está a competitividade e a necessidade de impor o estilo de jogo e a força física sobre o adversário. “Essa é uma daquelas clássicas perguntas do ovo e da galinha. O que veio primeiro: os jogadores viraram atletas e o desporto ficou mais intenso? Ou a intensidade das partidas exigiu que os jogadores aprimorassem cada vez mais a parte física?”, questiona Laitano.

Do ponto de vista das partidas, essa mudança nas últimas décadas ajudou a igualar e a aumentar a competitividade, acreditam os especialistas. “Historicamente, os brasileiros sempre tiveram uma vantagem técnica sobre os adversários, o que tornava a seleção praticamente imbatível“, analisa Laitano. “Porém, com o passar do tempo, os adversários foram diminuindo essa diferença ao evoluir na parte física e na capacidade de marcação“, complementa.

Isso fez com que os especialistas que cuidam dos atletas do país precisassem se adaptar e exigir não apenas habilidade e criatividade, mas também um nível de preparação física muito maior.

A distância percorrida pelos jogadores durante uma partida é uma boa medida para entender a diferença entre o passado e o presente. Um trabalho publicado em 2015 por um time da Escola Universitária de Educação Física de Poznan, na Polônia, calcula que nos anos 1960 e 1970 um jogador percorria entre 4 e 5 km durante os 90 minutos em campo. Esse número triplicou de lá para cá. A partir dos anos 2000, um atleta do futebol chega a correr 12 km — e alguns ultrapassam os 15 km.

“Para alcançar isso, é preciso muito treino com o objetivo de aumentar a capacidade cardiorrespiratória”, diz Laitano.

Outra diferença notável está na constituição do corpo: os integrantes de uma equipa moderna costumam ser mais altos e fortes, o que permite aguentar o ritmo intenso e disputar o espaço com os adversários.

Zogaib conta que atualmente existem equipamentos e tecnologias capazes de medir cada parâmetro do corpo humano — e, se for o caso, detetar pontos que podem ser aprimorados nos treinamentos.

“Hoje sabemos até as características genéticas dos atletas. Também avaliamos a capacidade de resistência, a eficiência da corrida, os limiares de velocidade, a distribuição da massa muscular, a potência, o tipo de fibras musculares…”, enumera. “Com isso, conseguimos direcionar a carga e o tipo de treinamento de maneiras cada vez mais individualizadas.”

Gualano destaca que toda essa capacidade de análise provocou outra mudança no futebol: os atletas de ponta possuem atualmente um staff particular. Ou seja, além do batalhão de técnicos, fisiologistas, preparadores físicos, fisioterapeutas e demais profissionais do clube e da seleção onde atuam, esses jogadores contratam uma equipa própria, que ficará focada apenas nas necessidades deles.

“Isso é algo que vem do basquetebol nos Estados Unidos da América, em que o trabalho de todos esses auxiliares se torna absolutamente essencial para que os atletas consigam mostrar o talento que possuem ao jogar em alto nível”, explica o professor da USP.

Apesar de tantos avanços, Zogaib entende que há espaço para evoluir mais e desenvolver jogadores com capacidade física ainda mais avantajada. Na visão do especialista, a próxima fronteira está nas categorias de base, que reúnem os atletas adolescentes.

“Se essa preparação começa já na infância e na adolescência, é possível pensar que esses indivíduos terão um rendimento muito maior quando forem profissionais mais para frente”, conclui.

// BBC

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