A História da Colômbia está sob debate. Armando Martínez, presidente da Academia de História do país, colocou em causa a existência de Manuela Beltrán, a primeira heroína colombiana da luta pela independência. Uma genealogista ouviu o depoimento, decidiu investigar e refutou a tese, depois de ter encontrado a certidão de nascimento da mulher. Mas será o suficiente para acreditarmos na sua existência?
De facto a ficção, numa questão de horas. Manuela Beltrán tornou-se uma figura central da Revolta dos Comuneros, em 1781, mas a sua existência foi recentemente posta em causa.
Conta-se que, há 242 anos, após as autoridades espanholas terem declarado um novo aumento de impostos em Socorro, cidade natal de Beltrán, a camponesa marchou até à praça da cidade, rasgou o edital e liderou uma revolução que abriria o caminho para a independência.
Hoje, são várias as ruas do país que se enchem de estátuas a honrar a sua história. Aliás, segundo o Atlas Obscura, várias gerações cresceram a ouvir falar da sua coragem e ousadia; em 2011 o Governo imprimiu um selo com a sua imagem; deu nome a uma Universidade em Bogotá e é o membro mais antigo de uma pequena irmandade de mulheres veneradas pelo seu papel nas revoltas pela independência – as Mártires Revolucionárias da Colômbia.
Todos estes factos nos fariam acreditar piamente na sua existência, mas Armando Martínez colocou-a em discussão recentemente. O presidente da Academia Colombiana de História afirmou em duas entrevistas que Manuela Beltrán não passava de uma invenção literária.
A genealogista Rocío Sánchez ouviu as palavras de Martínez na rádio e dedicou-se prontamente a desmentir a sua tese. Em pouco tempo, encontrou a certidão de nascimento de Beltrán: “Não se pode dizer que ela não existiu, porque existiu”, reiterou, citada pelo El País.
Depois de confrontado com o documento, que data de 2 de julho de 1724, Armando Martínez preferiu manter-se em silêncio. Parece claro que Manuela Beltrán existiu, resta saber se foi a heroína que a História apregoa.
Abalo na História da Colômbia
Judith González-Eraso, doutoranda em Sociologia na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, no Equador, e investigadora e antiga professora na Universidad del Valle, na Colômbia, estuda há já 12 anos o percurso das mulheres do movimento independentista do país.
Ao longo do seu percurso, deparou-se repetidamente com uma verdade desconcertante: as provas não corroboravam as histórias. A primeira menção a “Manuela Beltrán” como figura revolucionária só aparece num texto histórico de 1880, mais de um século depois de alegadamente ter vivido. Além disso, não existem vestígios das muitas citações atribuídas à camponesa ou a outras heroínas contemporâneas, nem lápides, certidões de óbito ou qualquer registo dos nomes.
“Não estou a negar a participação das mulheres”, mas a história de Manuela Beltrán como heroína e líder da revolta “é quase de certeza apenas isso – uma história“.
“Manuela” e “Beltrán” eram nomes comuns no período revolucionário. Apesar de Rocío Sánchez ter encontrado o registo de batismo de uma Manuela Beltrán nascida em 1724, Gonzalez-Eraso diz que o trabalho dos genealogistas é encontrar um nome e não verificar a narrativa, daí acreditar que a ligação entre o mito e o nome é apenas especulação.
As afirmações dos últimos meses têm abalado a História do país, com os cidadãos a adotarem diferentes tipos de reações: enquanto uns estão indignados ou reféns da dúvida, outros caíram na descrença e frustração.
Mauricio Durán, dono de um restaurante em Socorro, teme repercussões culturais. “Dizerem que Manuela Beltrán não existiu, é como se tirassem um pedaço da História da cidade. Não concordo que venham para cá com esses boatos. Ela é um ícone”, afirmou.
O historiador Jorge Orlando Melo, antigo diretor da biblioteca Luis Ángel Arango e autor de vários livros sobre a história da Colômbia, acredita que, embora a mulher possa ter existido, a ligação entre o seu gesto de descontentamento e a luta pela independência é um exagero.
“Acho que não há dúvida de que foi uma mulher que fez o edital, [uma mulher] que o presidente da câmara da cidade chama Manuela Beltrán, e que existiu de facto uma Manuela Beltrán. Agora, dizer que ela era uma heroína que estava a lutar pela independência, isso é imaginário”, disse.
Mas como nasceu, afinal, esta história heróica? No final do século XIX, a atual Colômbia tinha apenas meio século de existência. González-Eraso acredita que a história de Manuela Beltrán ajudou a unir um país acabado de nascer.
“Nenhuma nação se constrói do nada. A nação precisava desta configuração mítica e cívica. Estávamos a separar-nos de Espanha, precisávamos dos nossos próprios símbolos e mitos”, sustentou a investigadora, que, apesar de insistir que não está a reescrever a História do país, quer que as pessoas reconheçam que os heróis são criações simbólicas, produto da imaginação e das narrativas históricas.
Entre as meias-verdades e exageros, a história de Manuela Beltrán pode ser um exemplo perfeito do poder duradouro dos mitos.