O manifesto dos “Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990” (AO90), divulgado esta segunda-feira, contesta o “critério da pronúncia” adotado, que “gerou aberrações” e afirma que “o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”.
“O Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) nasceu de uma ideia imprevidente do então primeiro-ministro, Cavaco Silva, a pretexto de unificar as duas ortografias oficiais do Português (sic) – alegadamente para evitar que o Português de Portugal se tornasse uma língua residual(!) -, e de simplificar a escrita”, lê-se no texto hoje tornado público.
“Na realidade, o que fez foi abrir uma caixa de Pandora e criar um monstro. O AO90 – a que os sucessivos Governos, com uma alegre inconsciência, foram dando execução -, é um fiasco político, linguístico, social, cultural, jurídico e económico”, sentencia o manifesto.
O manifesto, que é dirigido ao Chefe de Estado, ao parlamento e ao Governo, a juízes dos tribunais, “aos portugueses, funcionários públicos, escolas públicas, particulares e cooperativas, respetivos professores e alunos, universidades, editoras e autoridades administrativas independentes”, afirma que “o processo de entrada em vigor do AO90, nos Estados lusófonos, começou por ser um golpe político“.
Chamam a atenção, os subscritores, que Angola e Moçambique, “os dois maiores países de Língua Portuguesa a seguir ao Brasil”, “nunca o ratificaram”, enquanto Portugal, Brasil e Cabo Verde “o mandaram aplicar obrigatoriamente”.
O manifesto, assinado por mais de uma centena de personalidades, como António Barreto, Carlos Fiolhais e António-Pedro Vasconcelos, é também dirigido à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa, à Academia das Ciências de Lisboa, ao Instituto de Linguística Teórica e Computacional e ao Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, à Imprensa Nacional – Casa da Moeda “e a todas as restantes entidades públicas e privadas”.
“Caos ortográfico”
Referindo-se ao “critério da pronúncia“, os signatários citam alguns exemplos, no tocante às consoantes mudas, defendendo que “o AO90 criou arbitrariamente centenas” de entradas de dicionário, “até aí inexistentes em qualquer das ortografias”, como “conceção” por “concepção”, “receção” por “recepção”, “espetador” por “espectador”, que geraram “confusões semânticas: “conceção de crédito, receção económica ou espetador de cinema” são exemplos.
“No entanto, pela mesma lógica, o AO90 deveria começar por cortar a mais muda de todas as consoantes: o “h” inicial. O que não fez”, realça o texto também assinado por Helena Buescu, Joaquim Pessoa e João de Freitas Branco.
Segundo o documento, o AO90 “estabeleceu 17 normas que instituem duplas grafias ou facultatividades, assentando num critério que se pretende de acordo com as pronúncias”, dando como exemplos “ruptura” e “rutura”, “peremptório” e “perentório”.
No caso de “óptico (relativo aos olhos), com a supressão da consoante muda p, passou a ótico (relativo aos ouvidos), o que cria a confusão total” entre especialistas e público, “que deixam de saber a que órgão do corpo humano”.
Em Portugal, para os subscritores do manifesto, como Constança Cunha e Sá e Eugénio Lisboa, “a eliminação sem critério das consoantes c e p, ditas mudas, afasta as ortografias do português europeu e do Brasil”, tendo ainda criado “desagregações nas famílias de algumas palavras”.
Salienta o texto que estas “desagregações” provocam “insólitas incoerências”, como “Egito” e “egípcios”, produtos “lácteos” e “laticínios”, os “epiléticos” que sofrem de “epilepsia” ou o “convector” que opera de modo “convetivo”.
“O facto de as facultatividades serem ilimitadas territorialmente”, acrescenta o manifesto, “conduz a uma multiplicação gráfica caótica”, como acontece com “contacto e contato, aritmética e arimética”.
“O curso universitário de Electrónica e Electrotecnia pode ser grafado com 32 combinações diferentes“, cita o documento, como exemplo “manifestamente absurdo”.
“A confusão maior surgiu entre a população que se viu obrigada a ter de aplicar o AO90, e passou a cortar cês e pês a eito, o que levou ao aparecimento de erros”, como “batérias”, “impatos”, “ténicas”, “fição”, “adatação”, “atidão”, “abruto” e “adeto”, “além de cortarem outras consoantes, como, por exemplo, o b em ojeção, ou o g em dianóstico”.
Com ou sem hífen?
Os subscritores, como Helena Roseta, José Pacheco Pereira e Januário Torgal Ferreira, afirmam que, no uso de maiúsculas e minúsculas, “o caos abunda” e é “caótica “a forma como se utiliza o hífen”: “guarda-chuva” e “mandachuva”, “cor-de-rosa” e “cor de laranja” são alguns exemplos.
“Entre outras arbitrariedades, a supressão do acento agudo cria situações caricatas. A expressão popular: Alto e pára o baile, na grafia do AO90 (Alto e para o baile) dá origem a leituras contraditórias”, e a frase “Não me pélo pelo pêlo de quem pára para resistir” fica incompreensível, adianta o documento.
“Para compensar o desaparecimento da consoante muda e evitar o fechamento da vogal anterior, imposto pelo AO90, na escrita corrente, surgem aberrações espontâneas como a colocação de acentos fora da sílaba tónica”, como “correção escrito corréção, espetaculo corrigido para espétaculo ou mesmo letivo que passa a létivo”.
Um “caos ortográfico” que se reflete nos vários dicionários, corretores e conversores, consideram os subscritores do manifesto.
// Lusa