Cartum, a capital do Sudão, está a ferro e fogo com uma tentativa de golpe de estado em curso. Grupos paramilitares rebeldes, apoiados pelo grupo Wagner, o “braço armado” de Vladimir Putin, e o exército sudanês estão em confrontos. O desfecho é imprevisível.
A televisão Al Jazeera, com sede no Qatar, tem estado a mostrar imagens de Cartum, sendo audíveis tiros e visíveis colunas de fumo em várias partes da capital do Sudão. Também se viram jipes com homens armados a circular no aeroporto de Cartum.
Os últimos dias vinham sendo marcados por uma crescente tensão entre os rebeldes do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) e o exército sudanês.
Neste sábado, os paramilitares anunciaram que tomaram conta do palácio presidencial para se “defenderem” numa “resposta a forças hostis”, assegurando que infligiram “baixas pesadas” ao exército.
Os rebeldes garantem também que controlam o aeroporto internacional de Cartum, o maior do Sudão, como revela a agência espanhola EFE.
Além disso, reclamam o controlo de bases militares do país africano que dizem ter apreendido ao exército sudanês após os confrontos deste sábado.
O grupo paramilitar nasceu das milícias muçulmanas “janjaweed” que foram acusadas de crimes contra a humanidade no conflito do Darfur que continua no oeste do Sudão.
A EFE fala de uma grave escalada no país.
O exército do Sudão não confirma a perda do controlo das bases militares, nem tão pouco do aeroporto ou do palácio presidencial.
Mas o porta-voz do exército, Nabil Abdallah, revela à Reuters, como cita a BBC, que os rebeldes do RSF “atacaram vários acampamentos do exército em Cartum e em outros locais do Sudão”.
“Os confrontos prosseguem e o exército está a cumprir o seu dever de proteger o país”, adianta ainda o Brigadeiro General.
Rebeldes têm o apoio do grupo russo Wagner
O Sudão é governado pelo Conselho Soberano, liderado por generais, depois de um golpe de estado organizado em Outubro de 2021.
Os rebeldes do RSF são controlados pelo vice-presidente desse Conselho, o General Mohamed Hamdan Dagalo, e têm o apoio do grupo russo Wagner que é visto como o “braço armado” de Vladimir Putin, fazendo, muitas vezes, o “trabalho sujo” que o presidente da Rússia não pode fazer por vias oficiais.
O presidente do Conselho Soberano do Sudão é o General Abdel Fattah al-Burhan que controla o exército do país.
Desde o golpe de estado de 2021, o país tem discutido uma mudança para um regime democrático, com a realização de eleições e a integração dos elementos do RSF no exército nacional.
Essa transição deveria ocorrer nos próximos dois anos, nos planos de Al-Burhan, mas o RSF quer atrasar esse processo por, pelo menos, uns 10 anos, como reporta a BBC.
Pelo meio, há uma disputa entre Al-Burhan e Dagalo quanto a quem será o líder do exército nacional no âmbito de um futuro governo democrático.
Os dois generais já manifestaram a intenção de encontrar uma solução pacífica. Mas o que é certo é que os confrontos agravaram-se nos últimos dias.
O que é que a Rússia ganha com golpe de estado?
O Sudão tem estado em negociações com a Rússia que quer construir uma base naval no Mar Vermelho. Putin oferece ao país africano mais armas e mais equipamento militar em troca de um acordo que permita aos russos instalarem-se no seu território.
As conversações começaram em 2019, ou seja, durante o Governo do autocrata Omar al-Bashir que foi deposto nesse ano. Mas o acordo só foi anunciado em 2021, já depois do golpe militar.
Dagalo é considerado uma figura muito próxima da Rússia. Em Fevereiro de 2022, o líder dos rebeldes paramilitares assumiu negociações na primeira pessoa com altas autoridades russas em Moscovo, com uma visita realizada na véspera da invasão da Ucrânia.
Já o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, visitou o Sudão em Fevereiro deste ano, reflectindo o esforço que Moscovo vem fazendo para expandir a sua influência neste país, e em África em geral.
No âmbito da visita de Lavrov, reforçou-se oficialmente o interesse na construção da base naval russa no Sudão, anunciando-se que o acordo final só aguarda a constituição de um Governo democrático para tomar forma.
Mas a transição para um governo democrático poderá deitar por terra os interesses russos, uma vez que existe a possibilidade de surgir oposição à construção da base naval. Vários líderes tribais já se manifestaram contra a presença militar estrangeira no país.
Uma base naval permitiria instalar soldados russos e navios de guerra no estratégico Porto do Sudão, garantindo a presença da Rússia no Mar Vermelho e no Oceano Índico. Além da importância geopolítica desse passo, também permitiria poupar esforços e combustível em longas viagens para aquela área.
À conquista de África após “o terramoto”
O Sudão enfrenta um embargo de armas imposto pela ONU até 2024 no âmbito do terrível conflito no Darfur. Assim, tem todo o interesse em receber o apoio dos russos neste âmbito.
Por outro lado, Putin também está de olho na mineração de ouro no Sudão.
Um membro do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, Dmitry Trenin, confirma que a Rússia está a apontar esforços ao fortalecimento das suas relações com os países africanos.
A “principal razão” para isso “é o terramoto que destruiu as relações da Rússia com a Europa e o Ocidente em geral”, diz Trenin citado pela Al Jazeera, referindo-se às sanções devido à guerra na Ucrânia.
“Com a guerra híbrida entre o Ocidente e a Rússia, são os países do Médio Oriente, de África e Ásia que são considerados os parceiros russos mais importantes e únicos da Rússia”, acrescenta ainda.
Perante isto, crescem as preocupações dos países ocidentais que temem a crescente influência da Rússia no Sahel africano, a fronteira entre o norte do continente e a restante África subsariana.
É a arquitectura de segurança do Médio Oriente que está em jogo e com os russos ao barulho, nunca se sabe o que esperar.
Susana Valente, ZAP // Lusa