Uma estranha habilidade das esponjas marinhas intriga cientistas e filósofos

Uma estranha habilidade das esponjas marinhas intriga tanto cientistas quanto filósofos. Está tudo relacionado com o nosso sentido de identidade.

Se apagássemos as suas memórias, você ainda seria você mesmo? E se cortarmos a sua cabeça e pusermos numa jarra, o seu corpo noutra, e mantê-los vivos. Em qual jarra você diria que está? E se separássemos todas as suas células individuais e depois reconstruíssemos o seu corpo célula por célula: voltaria a ser você?

Vamos tentar familiarizar-nos com um conceito escorregadio e ilusório: o nosso senso de identidade.

O que é você além do seu corpo? Onde está dentro do seu corpo e quanto podemos manipular o seu corpo sem que o seu eu essencial seja afetado?

Para nos ajudar com essas questões complexas, recorremos a uma das criaturas mais simples do planeta: a esponja.

“As pessoas não entendem como as esponjas conseguem fazer tanto com tão pouco”, diz a bióloga marinha Sally Leys, professora de Ciências Biológicas da Universidade de Alberta, no Canadá, especialista em esponjas.

Estes animais aquíferos que existem há pelo menos 5 milhões de anos são essencialmente tubos gigantes que filtram a água. As esponjas não têm músculos, órgãos, sistema nervoso ou cérebro, por isso poderia supor que não têm pensamentos, sentimentos ou autoconsciência. No entanto, conseguem fazer algo incrível.

Da nuvem à esponja

A experiência de laboratório descrita a seguir é brutal, mas não fatal, permitindo que os cientistas estudem vários aspetos da biologia animal, além de fornecer informações sobre como é que os primeiros organismos se formaram.

“Se pegar numa esponja e passá-la por uma malha muito pequena — 20 mícrons mais ou menos —, há algumas células que, ao se moverem e colidirem, fazem conexões e aos poucos organizam-se para formar todo o corpo novamente”, diz a especialista.

As esponjas podem mesmo fazer isto: reagrupar-se a partir de uma espécie de lama viva no fundo do mar. É como um superpoder.

A experiência clássica — diz Leys — é feita com uma esponja azul e outra vermelha que, depois de passar pela malha, tornam-se uma nuvem roxa de células que, nas condições adequadas e com tempo suficiente (de uma semana a dez dias), transformam-se numa esponja azul e… outra vermelha.

“Assim, elas têm a capacidade de determinar o eu do não eu”.

A grande pergunta

As esponjas têm alguma forma de autoconsciência codificada diretamente nas suas células individuais. Mas a pergunta de um milhão de dólares é se a esponja que se regenerou é a mesma esponja ou se durante esses dez dias foi gerado um novo animal, um clone criado a partir de um que deixou de existir.

É difícil saber. Depende de quanto das suas recordações e personalidade e outras coisas que pensamos que compõem o “eu” vão da esponja original para a reconstituída.

Mas se acabamos de estabelecer que as esponjas não têm cérebro… então não devem ter personalidade ou recordações, certo? Essa é outra coisa incrível sobre as esponjas: que, de certa forma, elas possuem essas coisas.

“Na realidade, você pode ver que há coisas que as irritam”, revela Leys.

Porque é que uma esponja fica irritada?

“Ela fica irritada com o movimento, por isso, se você bater na mesa, ela sentirá as vibrações e cuspirá a sua água, ao que chamamos de espirro”.

“Demora cerca de uma hora para relaxar novamente. Então, basicamente, você tem que fazer outra coisa até que a irritação passe”.

“Às vezes os estudantes adiam as experiências, porque algumas esponjas ficam incomodadas se você fizer isso de manhã”.

“Trabalhando com elas nos laboratórios, aprendemos a conhecer o seu carácter”.

E podem aprender coisas? “No sentido de que podem reconhecer uma situação que já encontraram antes, é possível”.

Leys conta que uma vez conseguiu treinar uma esponja para se agarrar à placa de Petri da forma que ela queria. No começo, a esponja encolhia como se fosse uma bola, e a cientista reabria-a. Esse processo repetiu-se diversas vezes.

“No quinto dia, a esponja começou a fazer exatamente o que eu queria, então em casos como esse elas podem aprender e adaptar-se”.

E elas lembram-se do que aprenderam depois de se desintegrar e reintegrar? “Boa pergunta! As populações com que trabalhamos aprenderam algumas coisas. Passando por processos de regeneração, por exemplo, adaptaram-se à água doce”.

“A questão é quantas vezes você pode pegar numa esponja, reduzi-la a células, deixá-las reagrupar, sem que deixem de ser o que eram”.

E isso nos leva ao início deste texto: à nossa autoconsciência. E ao paradoxo do teletransporte.

Jornada nas Estrelas?

Sim, estamos a falar de viajar à velocidade da luz através de galáxias apenas com o toque de um botão. Desde que a ficção científica começou a brincar com a possibilidade de teletransporte no final do século XIX, a ideia tem intrigado filósofos como Charlie Huenemann, da Universidade do Estado de Utah, nos EUA.

Huenemann elabora um cenário hipotético. “Estou preso em Marte. Os tanques de combustível da minha nave de regresso partiram-se e nenhuma equipa de resgate pode vir-me salvar”, imagina Huenemann.

“Mas, felizmente, a minha nave tem um teletransportador. A máquina analisa o meu corpo e produz um esquema incrivelmente detalhado, uma imagem clara de cada célula e neurónio, e esse esquema é depois transmitido de volta à Terra, onde um novo ‘eu’ é construído usando as matérias-primas disponíveis”.

Parece bom: salvação ao alcance de um simples botão. Qual é o problema?

“Posso ver racionalmente porque é que isso deveria funcionar, porque sou apenas uma configuração particular de células, e não é como se uma molécula de carbono fosse mais eu do que outra molécula de carbono. Contanto que tudo esteja organizado da mesma maneira, não deveria importar”, diz o filósofo.

Mas não é assim tão simples. Lembre-se que estamos a falar de um paradoxo, então surge uma pergunta: a máquina está a transportá-lo pelo Universo ou está a matá-lo e recriar uma nova versão sua na Terra, com todas as suas memórias e personalidade intactas, que agora pensa que é você?

“Na minha opinião, eu morreria no teletransporte em Marte e alguém muito parecido comigo apareceria na Terra”.

“Eu teria toda a estrutura celular, todas as conexões neurais e assim por diante para pensar que sou eu, e não está claro que a cópia de mim que está na Terra esteja equivocada”.

“Tudo o que me faz pensar que sou eu estaria presente nessa cópia na Terra”.

Mas se as suas memórias e a sua estrutura molecular e neural são suas, e tudo é uma cópia carbono, porque é que não seria você?

“Isso é o que eu acho muito interessante sobre esta experiência mental”.

“O que isso nos ensina é que, num sentido profundo, não existe um ‘eu’ como uma unidade indivisível que pode ou não dar aquele salto de Marte para a Terra”. Por outras palavras, essa autoconsciência — que ‘eu sei que sou eu’ — na realidade é uma ilusão.

“De facto, muitos filósofos chamaram o eu de ‘uma ilusão do utilizador’. Uma ilusão que surge das nossas vidas. ‘Sinto que sou a mesma pessoa de ontem e espero ser a mesma pessoa amanhã'”.

“Mas se tentarmos ir mais longe e perguntarmos ‘existe um ‘eu’ duradouro que permanece o mesmo ao longo do tempo?’ é quando uma experiência mental como o teletransportador nos ensina: não, não existe”.

Crise de identidade

Então, mesmo que você sinta que é a mesma pessoa de ontem, as coisas são diferentes: o clima, a comida, as pessoas com quem você interage, a maneira como você faz isso, o seu humor…

Talvez o que você é seja uma iteração do seu “eu” de ontem, e não exatamente a mesma pessoa. Além disso, o que faz você não é apenas o que você é — o arranjo dos seus átomos, a genética ou o que está a codificar as suas células — mas também de onde você é.

“Muito de quem somos é construído a partir do nosso relacionamento com outras pessoas: a sociedade em que você está, o trabalho que você tem etc.”, conclui Huenemann.

Vamos tentar realizar outra experiência mental, sem precisar de sair do planeta. Quando você for para a cama esta noite, vai-se deitar e dormir. E quando estiver inconsciente, a sua consciência de si mesmo se dissolverá de alguma forma.

Enquanto você dorme, o seu corpo e cérebro transformam-se. Muitas das suas células vão mudar e é possível que acorde com novos caminhos neurais.

O ‘você’ que acorda de manhã é o mesmo ‘você’ que adormeceu na noite anterior? Talvez sim ou talvez não: é possível que a ilusão do “eu” seja reformada a cada manhã. Simplesmente não há como saber.

// BBC

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.