Uma organização sem fins lucrativos terá ignorado sinais de consciência em 103 pacientes que estavam prestes a ter os órgãos retirados para doação.
Uma investigação federal nos Estados Unidos revelou práticas alarmantes na rede de doação de órgãos do estado do Kentucky, concluindo que os funcionários ignoraram repetidamente sinais de consciência em pacientes que estavam a ser preparados para a remoção de órgãos.
O relatório, conduzido pela Administração de Recursos e Serviços de Saúde dos EUA (HRSA), analisou 350 casos nos últimos quatro anos, identificando pelo menos 73 em que os pacientes apresentavam níveis elevados ou em melhoria de consciência — mas o processo de colheita de órgãos prosseguiu.
A investigação centrou-se na prática crescente da doação após morte circulatória (DCD), que envolve pacientes que não estão em morte cerebral, mas permanecem ligados a suporte vital com função cerebral mínima. Neste sistema, os órgãos só podem ser removidos após a morte natural do paciente, depois de retirado o suporte vital, seguindo protocolos rigorosos para evitar intervenções prematuras.
Apesar destas salvaguardas, o relatório concluiu que a organização Kentucky Organ Donor Affiliates (KODA) — atualmente denominada Network for Hope após uma fusão — violou repetidamente esses protocolos. Os funcionários exerceram pressão sobre as famílias para obter consentimento, interferiram com a autoridade médica e tentaram avançar com procedimentos mesmo quando havia sinais evidentes de consciência ou possível recuperação.
Em vários casos particularmente preocupantes, os pacientes mostraram sinais de dor, angústia ou retomaram a consciência enquanto eram preparados para cirurgia. Em dezembro de 2022, uma vítima de overdose com 50 anos começou a olhar em volta menos de uma hora depois de ser desligada do suporte vital.
Em vez de interromper o processo, a equipa adiou a decisão por mais 40 minutos — tempo suficiente para tornar os órgãos inviáveis — antes de transferir o paciente para cuidados intensivos. Ele acabou por se sentar, falar com a família e faleceu três dias depois, relata o The New York Times.
Ao todo, 103 casos foram considerados “preocupantes”, sendo os incidentes mais frequentes em hospitais rurais. A investigação revelou ainda que mais de metade dos transplantes coordenados pela organização do Kentucky envolviam dadores em morte circulatória — um número significativamente superior à média nacional.
Um dos casos mais divulgados foi o de Anthony Thomas Hoover II. Em 2021, Hoover sofreu uma overdose e foi declarado inconsciente. Após a família autorizar a doação, surgiram sinais claros de melhoria neurológica. De acordo com os registos clínicos, chorou, agitou-se na cama e chegou a encolher os joelhos ao peito durante a preparação para a cirurgia. Um médico recusou desligar o suporte vital. Hoover acabou por recuperar e, atualmente com 36 anos, vive com sequelas neurológicas.
Antigos funcionários relataram ao The New York Times que a pressão interna para avançar com a colheita de órgãos era intensa. “Se não fosse aquele médico, teríamos avançado com toda a certeza”, afirmou Natasha Miller, que se encontrava na sala de operações no caso de Hoover.
Em resposta às conclusões federais, os reguladores exigiram mais formação para os funcionários, avaliações neurológicas mais frequentes e o cumprimento rigoroso das diretrizes éticas. A Network for Hope afirmou ter recebido o relatório e comprometeu-se a cumprir todas as recomendações.
Entretanto, o procurador-geral do Kentucky está a realizar uma investigação separada ao caso de Hoover, que continua em curso.