O extraordinário conceito do nada que levou à invenção do zero

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geralt / Pixabay

Dizem que, certa vez, depois de conquistar a Pérsia, há quase 2,3 mil anos, Alexandre Magno chegou às margens do Rio Indo e encontrou um gimnosofista – um sábio nu – sentado sobre uma rocha, a olhar para o céu.

“O que está a fazer?”, perguntou Alexandre. “A experimentar o nada”, respondeu o gimnosofista, questionando: “e tu, o que estás a fazer?”. Ao que Alexandre respondeu: “a conquistar o mundo”. Os dois riram-se, cada um a achar que o outro era um tolo que estava a desperdiçar a sua vida.

O mitólogo indiano Devdutt Pattanaik relembra esta história para ilustrar as diferenças entre a cultura indiana e a ocidental – e também para mostrar como a Índia estava filosoficamente aberta ao conceito do nada, muito antes de ter sido escrito o primeiro número zero.

As três grandes religiões da Índia antiga – o budismo, o hinduísmo e o jainismo – mantinham foco sobre os números. A matemática indiana remonta ao período védico (perto do ano 800 a.C.), quando a prática religiosa exigia cálculos bastante sofisticados.

Naquela época, os rituais eram parte importante da vida das pessoas. E a construção de altares de fogo era regida por especificações precisas, detalhadas nos Śulbasūtras, os textos científicos mais antigos da Índia. Escritos entre 800 a.C. e 200 a.C., contêm, entre outras coisas:

  • Conversões de figuras geométricas, como do quadrado para o círculo ou do retângulo para o quadrado, mantendo as mesmas áreas. Para isso, foi preciso calcular o valor do número pi (π);
  • O cálculo da raiz quadrada de 2 (√2), o número irracional que viria a ameaçar a filosofia pitagórica;
  • E, falando em Pitágoras, os escritos indianos já incluíam o teorema que leva o seu nome, 200 anos antes do nascimento do filósofo e matemático grego.

Além de estarem adiantados na geometria, os indianos desenvolveram uma obsessão única no mundo antigo por números gigantescos.

Na Grécia, o número mais alto era a miríade, que representava 10 mil. Mas a Índia chegou aos biliões, triliões e mais além. Vestígios dessa antiga paixão pelo inviavelmente grande permanecem vivos até hoje.

“Números muito grandes fazem parte das conversas. Por exemplo, se falo em ‘padartha’ sem explicar, quase toda a gente entende”. A padartha é “10¹⁷ — um 1 seguido por 17 zeros [100.000.000.000.000.000] – e significa literalmente ‘a meio caminho do céu'”, exlica o matemático indiano Shrikirshna G. Dani.

“E, na tradição budista, os números iam muito mais além: 10⁵³ é um deles”, continuou.

Mas qual o motivo desses números? Eram usados para alguma coisa? “Não há nenhuma razão prática óbvia”, afirmou Shrikirshna G. Dani. “Acredito que há um certo tipo de satisfação que as pessoas obtêm quando pensam neste tipo de números.”

Os jainistas não ficavam atrás. Raju, por exemplo, é a distância percorrida por um deus em seis meses, depois de percorrer 100 mil yojanas a cada abrir e fechar de olhos. Fazendo um cálculo aproximado, se um deus piscar os olhos 10 vezes por segundo, ele percorre cerca de 15 anos-luz.

Nenhum texto religioso ocidental menciona qualquer valor próximo a esse.

E, como se não bastasse, os indianos contemplaram e classificaram diversas variedades de infinito, o que foi fundamental para desenvolver o pensamento matemático abstrato dois milénios mais tarde.

Do nada para o zero

A noção de vazio já estava presente em diversas culturas. Os maias e os babilónicos, por exemplo, usavam marcadores de ausência de quantidade. Mas os indianos foram os que transformaram essa ausência em 0, chamando-lhe de shunya (“vazio”, em sânscrito).

Dar um símbolo para o nada, dizendo, noutras palavras, que nada era alguma coisa, talvez tenha sido o maior salto conceptual da história da matemática.

Até há poucos anos, o zero mais antigo já encontrado era o que aparece numa parede do templo do forte de Gwalior, no centro da Índia. Data de 875 a.C. Mas, naquela época, o zero já era de uso comum na região.

Desde 2017, a menção mais antiga do zero já registada é um antigo pergaminho indiano conhecido como manuscrito Bhakshali, que foi datado por carbono como sendo dos séculos III ou IV – mas alguns especialistas não aceitam esta datação.

De qualquer forma, tanto quanto sabemos, os astrónomos e matemáticos indianos Aryabhata, nascido em 476, e Brahmagupta, nascido em 598, foram os primeiros a descrever formalmente as casas decimais modernas e as regras atuais que regem o uso do número zero, demonstrando a sua incrível utilidade.

Superior a todos os outros pela forma como facilitava os cálculos, o sistema numérico indiano espalhou-se, primeiro pelo Médio Oriente, para depois chegar à Europa e ao resto do mundo, até se tornar o sistema dominante.

Mas por que o zero originou-se na Índia? Foi só para escrever grandes números, ou havia outras forças espirituais em jogo?

“O interessante é que há uma grande quantidade de shunya a surgir em toda parte. Estava por aí desde aproximadamente 300 a.C.”, segundo o historiador da matemática George Gheverghese Joseph.

O especialista diz que o shunya estava presente em “manuais arquitetónicos, a dizer que o importante não eram as paredes, mas o espaço entre elas”, e até “na crença existente no budismo, no jainismo e na religião primitiva e básica de que precisamos de alcançar um estado específico chamado nirvana, no qual tudo é apagado”.

“Era um ambiente muito fértil para que alguém, cujo nome não conhecemos, percebesse que esse conceito filosófico e cultural também seria útil no sentido matemático”, afirmou o historiador.

Para a matemática Renu Jain, vice-chanceler da Universidade Devi Ahilya Vishwadivyalaya, na Índia, não há dúvida de que a ideia espiritual do nada inspirou a ideia matemática do zero.

“Zero não indica nada, mas, na Índia, ele é derivado do conceito de shunya, uma espécie de salvação, o ápice qualitativo da humanidade, em certo sentido”, explicou. “Quando todos os nossos desejos são atendidos, não temos nenhum desejo e, então, vamos para o nirvana ou shunya”, completou.

Ou seja, o nada é o todo.

Na verdade, o próprio uso do círculo para designar o zero pode ter origens religiosas.

“O círculo também simboliza o céu”, observa a historiadora da matemática indiana Kim Plofker. “Muitas das palavras usadas para codificar verbalmente o zero em sânscrito significam céu ou vazio. Por isso, como o céu é representado pelo círculo dos céus, este é um símbolo muito apropriado para o zero”, explicou.

“Segundo as religiões da Índia, o universo nasceu do nada, e o nada é o objetivo final da humanidade”, afirmou o matemático Marcus du Sautoy no episódio “The Genius of the East” (“O gênio do Oriente”, em tradução livre) da série de TV “Story of Maths” (“História da matemática”), da BBC.

“Por isso, talvez não seja surpreendente que uma cultura que acolheu o vazio com tanto entusiasmo pudesse acomodar sem problemas a noção do zero”, indicou.

Nunca poderemos afirmar com total certeza, mas, a julgar pelas opiniões de diversos especialistas, é provável que algo na sabedoria espiritual da Índia tenha levado à invenção do zero.

ZAP // BBC

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