A decisão da Rússia de enviar ao leste da Ucrânia um grande comboio de camiões com ajuda humanitária – incluindo alimentos e medicamentos – foi recebida com suspeitas, já que o país tem vindo a ser acusado de apoiar os rebeldes separatistas que lutam contra o governo ucraniano nesta região.
A ajuda foi enviada principalmente para a cidade de Lugansk, onde viviam 425 mil pessoas antes do início do conflito entre os rebeldes pró-russos e as forças fiéis a Kiev, em abril. Atualmente controlada pelos rebeldes, a cidade ucraniana está sob ataque do exército ucraniano.
A Ucrânia estabeleceu, entre as condições para aceitar a ajuda russa, que os 280 camiões com ajuda humanitária passem por um posto de controlo do governo ucraniano e sejam acompanhados por representantes da Cruz Vermelha.
As autoridades russas insistem que os veículos vão parar na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia e toda a carga será transferida à Cruz Vermelha, que então entregará a ajuda aos que dela necessitem do lado ucraniano.
A Cruz Vermelha, porém, disse que ainda está à espera que Moscovo forneça pormenores sobre os suprimentos que estão a ser enviados pela Rússia.
A BBC respondeu a uma série de perguntas para ajudá-lo a peceber a decisão russa de enviar ajuda humanitária à Ucrânia:
Quão grave é a situação em Lugansk?
Nas palavras do Comité Internacional da Cruz Vermelha, a situação na cidade e em outras áreas controladas por rebeldes pró-russos é “crítica – segundo relatos, milhares de pessoas estão sem acesso a água, eletricidade ou assistência médica“.
Em 11 de agosto, os habitantes que ainda permanecem em Lugansk completaram nove dias de “isolamento total”. As linhas de telefone fixas e móveis não estão a funcionar, informou a autarquia no seu site.
Os bombardeios continuam, e a maioria das lojas estão fechadas. Comida, medicamentos e combustível não chegam à cidade. Os camiões de lixo foram danificados por bombas, afetando a recolha.
As empresas não conseguem pagar os salários de seus funcionários e as outras pessoas também não estão a receber pensões e subsídios.
Atualmente, a temperatura permanece à volta de 30ºC durante o dia, o que agrava a situação dos moradores, que não têm acesso a água nem a eletricidade para os sistemas de ar-condicionado.
Muitos dos que viviam na cidade buscaram refúgio em outras partes da Ucrânia ou na fronteira com a Rússia, fazendo com que a população da cidade fosse reduzida para 250 mil pessoas, segundo a Câmara Municipal.
Quantas vidas foram perdidas ou afetadas no conflito até agora?
Pelo menos 1.543 pessoas foram mortas no leste do país desde meados de abril, o que inclui civis, militares e membros de grupos armados rebeldes, segundo informou a ONU a 8 de agosto. Outros 4.396 ficaram feridos, “mas o número provavelmente é muito maior”.
A Ucrânia disse que 468 dos seus soldados foram mortos. Por outro lado, os rebeldes contabilizam mais 800 mortes.
Quase 300 mil pessoas tiveram que deixar suas casas, de acordo com a agência de refugiados da ONU. Cerca de 117 mil ainda permanecem na Ucrânia – das quais 87% fugiram de Donetsk e Lugansk -, e outras 168 mil cruzaram a fronteira com a Rússia.
O que a Rússia está a enviar à Ucrânia?
Os media russos dizem que os 280 camiões russos carregam 2 mil toneladas de materiais de ajuda humanitária e que a Cruz Vermelha os receberá na fronteira entre os dois países.
“Os nossos camiões não cruzarão a fronteira. A carga será transferida”, disse o ministro das Situações de Emergência à BBC. “Mas ainda não se sabe como isso acontecerá. Não cabe a nós decidir, mas à Cruz Vermelha. Estamos apenas a acompanhar a carga.”
A ajuda vem de doações de habitantes da região de Moscovo, segundo o governo regional da capital russa, e inclui:
- 400 toneladas de cereais
- 100 toneladas de açúcar
- 62 toneladas de comida para bebés
- 54 toneladas de itens médicos e medicamentos
- 12 mil de sacos de dormir
- 69 geradores
O blogger Rustem Adagamov afirmou, depois de analisar as fotos do comboio humanitário, que se trata do “mais estranho” que ele já viu. Ele destacou que os camiões saíram de uma base militar próxima a Moscovo, em Alabino, sem qualquer identificação e com condutores que aparentemente vestiam uniformes militares.
No entanto, Adagamov disse acreditar que o comboio de fato leva ajuda humanitária, apesar de considerar que isso seja “mais uma demonstração de força” da Rússia.
O que diz a Cruz Vermelha?
O Comité Internacional da Cruz Vermelha concordou em distribuir a ajuda humanitária desde que mais pormenores sejam fornecidos antecipadamente. Também deixou claro que não aceitará uma escolta armada.
No entanto, o comunicado feito pela Cruz Vermelha tinha acabado de ser divulgado quando o “comboio” russo começou sua viagem, que deve levar entre dois e três dias.
Um porta-voz da Cruz Vermelha, Andre Loersch, disse que a organização tinha chegado a um acordo em termos gerais sobre a entrega da ajuda humanitária à região, mas não tinha “informações sobre o conteúdo” dos camiões e não sabia para onde estavam a vir.
“Neste ponto, não temos um acordo”, afirmou, citado pela AP.
A ajuda humanitária pode ser um cavalo de Troia russo?
Com cerca de 20 mil soldados russos posicionados ao longo da fronteira com a Ucrânia até recentemente,o secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, disse à Reuters acreditar que há uma “grande probabilidade” de uma intervenção militar russa.
“Vemos os russos a criar os pretextos para uma operação como essa sob o disfarce de ajuda humanitária, e vemos um aumento da presença militar que poderia ser usada para realizar operações ilegais na Ucrânia”, ele disse.
O ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, alertou que o comboio pode ser um “disfarce para os russos se instalarem perto de Lugansk e Donetsk e apresentarem-nos isso como um dado adquirido”.
Por que a Rússia iria querer enviar tropas à Ucrânia?
A Rússia tem sido acusada de encorajar e abastecer os separatistas com armas e voluntários. Um sistema de disparo de mísseis para abater aeronaves fornecido pela Rússia é apontado como a razão da queda do voo MH17 da Malaysia Airlines no leste da Ucrânia, em julho, com a morte de 298 pessoas.
Com o Exército ucraniano a ganhar terreno sobre os rebeldes e encurralando-os em cidades como Donetsk e Lugansk, parece não haver melhor momento do que agora para uma ação militar russa.
Não seria a primeira vez que tropas russas fariam uma intervenção na Ucrânia, mas a anexação da Crimeia, em março, praticamente não teve derramamento de sangue, enquanto as guerras no leste do país já tiraram ao menos 1.500 vidas desde abril.
O que diz o Kremlin?
Um porta-voz do Kremlin disse ao correspondente da BBC Steve Rosenberg que tanto a Cruz Vermelha como as autoridades em Kiev concordaram com o envio do comboio.
O assessor de imprensa de Vladimir Putin, Dmitry Peskov, disse aos media russos que a ideia de que estariam a planear uma operação militar disfarçada de ajuda humanitária é “absurda”.
Os ucranianos estão de acordo?
Autoridades do país disseram que não permitirão que nenhum comboio acompanhado por equipas russas entre no seu território.
Foi sugerido que empresas de transporte locais sejam enviadas à fronteira para receber a carga.
O ex-presidente ucraniano Leonid Kuchma disse à agência Interfax que a rota do comboio humanitário foi acordada, entrando na Ucrânia por Kharkiv, que está fora da zona de guerra, e seguindo para Lugansk.
A ajuda, afirmou, seria entregue sob a supervisão da Cruz Vermelha, e o comboio seria acompanhado por representantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Também haveria ajudas enviadas pela Ucrânia, União Europeia e pelos Estados Unidos.
ZAP / BBC