África do Sul tem uma nova “pandemia” que está a matar portugueses

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A indústria dos raptos, na África do Sul, está a “tornar-se uma pandemia”, e a comunidade portuguesa também está a ser atingida. Na semana passada, pelo menos dois empresários portugueses foram raptados e outro foi morto a tiro.

Uma nova onda de crimes de sequestro está a sacudir a comunidade portuguesa residente na África do Sul, com dezenas de pessoas raptadas nos últimos meses, particularmente gestores, comerciantes e homens de negócios.

Na última semana, pelo menos dois empresários foram raptados dos seus estabelecimentos comerciais, um na segunda-feira e outro na quinta-feira, e um terceiro foi morto a tiro, na manhã de sexta-feira, após uma tentativa de sequestro fracassada no centro da cidade de Joanesburgo, a capital económica do país africano.

O Fórum Português da África do Sul, uma organização não-governamental luso-sul-africana em Joanesburgo, relatou à Lusa um outro incidente que ocorreu recentemente, em que a mulher de um empresário madeirense foi morta a tiro quando acompanhava, num segundo veículo, o marido de regresso a casa no final de um dia de trabalho.

“Há um agravamento deste tipo de crime, que se começou a desenvolver a partir de 2010-2011 com origens em Moçambique (…). Durante o ano de 2023 registaram-se mais de 15.000 raptos na África do Sul”, sublinhou à Lusa o conselheiro das comunidades madeirenses na África do Sul, José Luís da Silva.

“De janeiro até agora julgo que são 12 ou 13 compatriotas [raptados na comunidade portuguesa na África do Sul]”, salientou o conselheiro madeirense.

Os alvos são empresários

Na ótica de José Luís da Silva, a recente onda de sequestros na comunidade portuguesa deve-se a vários fatores.

“Na minha opinião, este agravamento deve-se, primeiro, ao facto de as pessoas não cuidarem da sua própria segurança pessoal; não observam, não leem sinais, não falam com outros; depois, há a rotina, e o sequestro para um criminoso é um grande negócio”, explicou.

A rotina é algo que mata os nossos comerciantes que teimam em abrir e fechar à mesma hora, irem ao banco à mesma hora, as mesmas pessoas no mesmo carro, a rotina é que mata esta gente”, disse o conselheiro madeirense, para quem os comerciantes portugueses “têm de investir em segurança, e não apenas em videovigilância, também em meios humanos para reagir, para investigar, eles têm que antecipar a bandidagem”.

José Luís da Silva frisou que grande parte dos negócios da comunidade madeirense “é maioritariamente em dinheiro” e, exemplificou, “os talhos são negócios que geram muito dinheiro, têm muitas vendas”.

Borges Nhamirre, antigo jornalista da Bloomberg e atualmente colaborador do ISS em Maputo, especialista em questões relacionadas com o crime organizado e terrorismo, foi o autor do estudo referido por Els, publicado pelo instituto sul-africano em março de 2023. O especialista diz que dos cerca de 16.000 sequestros em 2023, “menos de 20 raptos movimentaram a maior parte do dinheiro, porque os alvos são empresários”.

A nova “pandemia” sul-africana

Willem Els, coordenador do programa de Crime Organizado e Terrorismo no Institute for Security Studies (ISS) sul-africano, considerou, em declarações à Lusa, que a indústria de raptos está a “tornar-se uma pandemia na África do Sul”.

O investigador sublinhou não apenas o “forte crescimento” desta atividade criminosa na África do Sul, onde “está realmente a ficar fora de controlo”, como as suas fortes ligações a Moçambique.

A prática de raptos para obtenção de resgates “está a ficar fora de controlo na África do Sul, que tem, de longe, a maior taxa de raptos dos países africanos” sublinhou, e é uma das mais elevadas do mundo, com cerca de 9,57 raptos por cada 100.000 habitantes, de acordo com o relatório de 2024 da organização World Population Review.

Portugueses cada vez mais fustigados

O jornalista e ativista anticrime sul-africano Yusuf Abramjee, apresentador do programa de televisão CrimeWatch, no canal ENCA, disse que se está a assistir a um “grande ataque” contra membros da comunidade portuguesa no país devido ao agravamento do crime de sequestro no país.

“O flagelo dos sequestros tem piorado mensalmente, agora temos uma das estatísticas mais altas do continente, está simplesmente fora de controle”, frisou.

“Historicamente, várias comunidades têm sido alvo, sejam etíopes, somalis, paquistaneses, indianos e até mesmo sul-africanos locais, agora estamos a ver um grande ataque contra membros da comunidade portuguesa”, declarou.

Willem Els confirma que o ISS já deu conta de uma ligação bastante forte entre o rapto de pessoas falantes de língua portuguesa na África do Sul e Moçambique.

“A máfia em Moçambique é muito forte, rapta pessoas falantes de português aqui na África do Sul, e por isso defendemos recentemente a necessidade de cooperação transfronteiriça para travar os raptos em ambos os países”, disse o especialista do instituto de análise sul-africano.

Criminosos “feitos” com a polícia

Borges Nhamirre e Williem Els destacam que esta prática “transfronteiriça”, que começou por afirmar-se em Moçambique há mais de uma década tem como principais mandantes cidadãos moçambicanos de origem asiática e pertencentes a essa comunidade em Moçambique, e conta com participação decisiva de agentes das polícias de ambos os países.

“Para ser bem-sucedido, o que qualquer sindicato de crime organizado tem primeiro de fazer é comprometer um ator estatal, e o primeiro ator estatal que normalmente é comprometido é a polícia”, disse Els.

Nhamirre descreve a organização destas redes criminosas em três níveis: “o dos que mandam, que são empresários que gozam de grande influência e impunidade, têm muito dinheiro, conseguem movimentar-se facilmente, e vivem entre Maputo, África do Sul e Dubai – ou seja, podem estar baseados em Maputo ou na África do Sul, mas as suas famílias, esposas e filhos, estão no Dubai ou algures nos Emirados Árabes Unidos”.

O segundo nível, o intermédio, faz a ligação entre os mandantes e os operacionais. “Alguns intermediários estão na cadeia e fazem esses trabalhos a partir das prisões, que usam como local seguro para fazer as chamadas telefónicas, movimentar dinheiro e tudo mais”, descreve o analista moçambicano.

Os atores do último nível, o dos “operativos”, “são normalmente agentes da polícia, no ativo ou desvinculados”, concluiu Nhamirre.

Fica difícil combater o terrorismo

Os dois investigadores apontaram recomendações semelhantes ou complementares para atacar a “pandemia”, incluindo uma “efetiva” cooperação transfronteiriça.

Els considera que um dos caminhos – apresentado recentemente às autoridades sul-africanas, que recorreram ao aconselhamento do ISS para definir as “prioridades” do novo titular das polícias, que deverá ser conhecido em breve – é o da criação de equipas multidisciplinares “na reação ao crime”, que envolvam a participação do setor da segurança privada.

Faltam polícias. A polícia sul-africana, à semelhança da moçambicana, perdeu muito capital humano e competências especializadas para as empresas privadas de segurança e precisa de uma restruturação profunda, sendo que “demorará anos até que a polícia reúna as competências à disposição do setor privado”, sublinhou.

“Enquanto estiver a ser restruturada, a polícia, assumindo a liderança, como o impõe a Constituição sul-africana, deve trabalhar com equipas multidisciplinares integrando o setor privado. Neste momento, penso que essa é a única solução para combater este tipo de coisas”, concluiu.

Nhamirre apontou igualmente para a necessidade de uma grande reforma, tanto em Moçambique como na África do Sul, nos setores de defesa e segurança”, que lhes proporcione uma “inteligência efetiva”.

“Precisamos de uma reforma profunda no setor de defesa e segurança com um objetivo final de remover o crime organizado do Estado, que está junto e cresce dentro dele. Dizer que está infiltrado é pouco para a realidade de Moçambique e da África do Sul”, disse.

ZAP // Lusa

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