As jogadores da seleção de futebol feminino do Afeganistão não treinam no seu país por razões de segurança. Muitas sofreram abusos sexuais e correm risco de vida para poderem jogar futebol.
Pelo menos alguma vez na vida, qualquer adepto de futebol já sonhou ser jogador de futebol. Para tal, é preciso sacrifício e esforço, mas nunca passaria na cabeça de ninguém ter de arriscar a própria vida para poder jogar. Este é o caso de algumas mulheres no Afeganistão, que chutam a “redondinha” para quebrar as barreiras do preconceito.
Apesar de ter nascido nos Estados Unidos, Kelly Lindsey é selecionadora feminina do Afeganistão. As voltas que a vida dá levaram-na a seguir este estranho caminho, levando-a a conhecer uma realidade totalmente diferente daquela que se encontra no mundo ocidental.
“As minhas primeiras perguntas à equipa foram: ‘Porque estamos aqui? O que significa para vocês representar o vosso país?’ A primeira resposta foi que jogavam por todas as mulheres afegãs que não tinham voz. Naquela altura, não percebi exatamente o que significava. Tinha uma ideia, sim, mas não conhecia a realidade. Demorei anos a entender”, confidenciou.
Enquanto que para muitos jogar futebol é pelo amor ao jogo, no caso destas mulheres afegãs é muito mais do que isso. É uma batalha pelos direitos humanos e de género.
Em conversa com o jornal espanhol El País, Lindsey falou da luta das suas jogadoras contra os abusos sexuais sistemáticos. A americana denunciou “uma cultura” de chantagem, intimidação e de perseguição sexual das jogadoras pelos dirigentes da federação afegã. Até mesmo do próprio presidente, Keramuudin Karim, que viria a ser suspenso, acusado de abusos sexuais a pelo menos cinco atletas.
Estas mulheres, que representam o seu país, nunca jogam no seu próprio país. Índia, Jordânia ou China são os destinos escolhidos. Lindsey explica que é “por motivos de segurança”. As suas jogadoras são maioritariamente afegãs exiladas. Há, porém, algumas atletas que vêm do Afeganistão e que são escolhidas por técnicos com os quais Lindsey comunica através da internet.
“Com sorte, uma vez por ano, juntam-se quatro ou cinco equipas de raparigas em Kabul para disputar um torneio. Isso não aconteceu mais de quatro vezes em toda a história, pelo que me dizem as minhas jogadoras. E não acontece desde 2014”, disse, citada pelo Tribuna Expresso.
Ainda este mês, “Sahar”, uma mulher iraniana de 30 anos, morreu após se ter imolado à frente do tribunal ao saber que poderia enfrentar uma pena de prisão de seis meses por tentar entrar num estádio de futebol. O caso levou a FIFA a bater o pé e aumentar os esforços — que se diga, de passagem, serem parcos — para assegurar o acesso das mulheres aos jogos de futebol.
No Afeganistão, as mulheres podem ir ver jogos de futebol entre homens, mas com uma condição: são remetidas para um canto específico do recinto.
“Sem dúvida, sinto-me em perigo”
Viver no Hong Kong não é suficiente para Lindsey, que admite que mesmo assim se sente ameaçada. “Sem dúvida, sinto-me em perigo”, confessou ao El País. “Gostaria de ir ao Afeganistão”, mas reconhece que o extremismo do país e a relutância em aceitar que as mulheres pratiquem desporto, limita em muito a sua vontade.
“Precisamos de trabalhar no terreno para ajudar os clubes a desenvolver o projeto. É lá que podes marcar a diferença. Estou convencida de que, ao viajar para lá, arrisco a vida, mas tento não pensar muito nisso porque não tenho o direito, uma vez que as jogadoras correm mais riscos do que eu. A nossa relação não é justa. Elas arriscam a vida todos os dias apenas para jogar futebol“, atirou.
Lindsey não tem dúvidas: “Estas são as mulheres mais fortes que conheci”. Apesar de reconhecer que inicialmente pareciam frágeis, foi uma surpresa descobrir que era, precisamente o contrário. Não se pode julgar um livro pela capa e as suas jogadores são provas vivas disso.
“Só a ida de casa ao treino é como atravessar um campo de batalha. Estão dispostas a arriscar a vida para estar num campo de futebol”, explicou a mulher natural do Nebraska. “Elas acreditam que o futebol pode mudar a cultura no seu país. Para elas, o futebol é a vida“.
Já em 2011, a NATO tinha denunciado o problema das futebolistas afegãs. A capitã de equipa de então, Zarhra Mahmodi, falou da preocupação dos familiares em ela praticar futebol, nomeadamente devido à falta de segurança. “Às vezes dizem-me que tenho de parar de jogar”, contou.
Nesta altura, as mulheres treinavam nos limites de um estádio, no Afeganistão. Apesar de terem um relvado ao lado, apenas eram autorizadas a usar o campo de basquetebol abandonado, com o piso em betão. Só as guarda-redes podiam recorrer ao relvado para treinar.
“Se queres promover um desporto, precisas de um orçamento. Se não tens orçamento, como é que podes desenvolver a tua equipa?“, atirou o então selecionador nacional Wahidullah Wahidi.