Instabilidade da carreira, burocracia e perda de autoridade. A “pandemia da educação”

Diretores, sindicatos e docentes pedem medidas urgentes para fazer face à falta de professores, com 10 mil docentes a desistirem da profissão.

Segundo o Diário de Notícias, o número dos estudantes inscritos em cursos superiores de Educação caiu 70% nas últimas duas décadas. É o retrato de uma “pandemia” que ainda corre o risco de se agravar na próxima década.

A instabilidade da carreira, burocracia em demasia, perda de autoridade e excesso de alunos por turma são alguns dos motivos apontados pelos docentes, que os levaram a sair do ensino.

Ricardo Cabral lecionou Informática de 2006 a 2014. Abandonou o ensino e não pretende regressar. “A principal razão da minha saída foi, no ano letivo 2013-2014 só ter conseguido colocação em fevereiro e muito distante da minha residência”.

“Essa originou outra, que foi o baixo rendimento. Tive de arranjar alojamento no sítio onde dava aulas, e só o alojamento levava quase metade do meu rendimento. Com duas crianças pequenas, obviamente que vinha todos os fins de semana a casa, o que originava mais despesas em combustível, portagens, etc.”, recorda. Mas Ricardo Cabral está longe de ser um caso raro.

“Mais de 10 mil professores saíram da profissão e não estão para voltar porque as condições são as que nós sabemos. Não vale a pena tentar fingir que não existe este problema”, afirma Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, que sublinha tratar-se de um problema antigo.

“Fomos alertando e nunca foi motivo de grande preocupação. Os números não enganam”, realça o dirigente sindical, sobre um problema que se reflete nas escolas portuguesas. Faltam professores e sobram alunos que não conseguem ter as aulas todas, quatro meses depois do início do ano escolar.

Ricardo Cabral regressou à indústria de tecnologias de informação, onde tinha trabalhado antes do início da carreira docente, mas continua “atento” aos problemas da educação e dá sugestões para reverter a falta de professores.

“O salário terá de ser sempre o primeiro ponto a ter em consideração. A progressão na carreira é muito lenta e com poucos incentivos salariais. Outra das medidas tem também de passar pelo respeito à entidade professor“, refere.

Susana Azevedo, antiga professora do 1.º ciclo, também não pretende regressar ao ensino, porque acredita ser “impossível não ficar longe de casa“.

Começou a carreira por vocação, em 2007, e, depois de várias dificuldades para encontrar estabilidade, mudou de área.

“Como professora contratada a colocação em cada escola era temporária, sempre por substituição. Mantive-me nesta situação até 2011″, desabafa.

“Ainda integrei o IEFP, como formadora, até finais de 2012. Após essa altura, já com dois filhos, sem apoio familiar próximo e com o marido com um emprego com limitações à vida familiar (agente da PSP), concorrer para longe tornou-se impossível e próximo da área de residência não conseguia colocação”, explica.

Agarrou “todas as oportunidades de emprego”, até ter conseguido ficar efetiva num hospital privado, onde ainda se mantém a trabalhar. Regressar ao ensino, no futuro, “talvez seja um desejo que nunca passe a realidade“.

“Ficar colocada numa escola a centenas de quilómetros de casa assusta-me. É totalmente inviável que os meus filhos alternem mensalmente ou mesmo semanalmente de escola. E ficar longe deles é impensável. Temos de fazer escolhas e ter prioridades, a minha é a família”, nota.

“Desistir do sonho” do ensino

É numa bomba de gasolina, na A29, que Ricardo Faria trabalha há 14 anos, mas mantendo vivo o “sonho” de voltar a ser professor.

Terminou a sua formação em Ensino Básico – 1.° Ciclo em 2005 e teve dificuldade em conseguir colocação, “numa altura em que a idade da reforma dos professores passou dos 52 para os 65 anos”.

Fez, entretanto, em 2011, uma pós-graduação em Ensino Especial e foi acumulando algumas colocações temporárias no ensino e em atividades de enriquecimento curricular (AEC).

Alcancei, finalmente, o meu sonho em novembro do ano passado, ao ficar colocado com 11 horas semanais em Educação Especial, acumulando com as oito horas de AEC e o horário noturno da BP, de 40 horas semanais”, conta.

Contudo, Ricardo Faria acabou por rescindir contrato como docente, dentro do período legal, devido ao cansaço da acumulação de funções.

“Gostava de enveredar por outra escolha, mas os encargos financeiros e familiares não me permitem trocar o estável pelo instável“, explica.

O docente aponta, por isso, como principal problema no contexto da falta de professores, a “instabilidade da carreira”, acrescida do “congelamento da progressão, o excesso de burocracia, a falta de reconhecimento e a baixa remuneração“.

Silvina Afonso, professora de 1.º e de 2.º ciclos, partilha a mesma opinião. Para esta antiga docente, a precariedade e a instabilidade são os maiores desafios para aqueles que pretendem “fazer do ensino a sua vida”.

“Para fixar os professores no ensino a atrair jovens para a profissão, é urgente diminuir a burocracia; oferecer melhores condições para as pessoas deslocadas a, por exemplo, cem quilómetros da sua casa, como subsídio de deslocação; abrir mais lugares efetivos nas escolas, pois professores contratados a fazer substituições ou a mudar de escola a cada ano não é coisa que muita gente almeje“, exemplifica.

Cansada de “ser maltratada e humilhada“, e para poder dar suporte à família, Silvina Afonso deixou de dar aulas e trabalha na hotelaria.

A ex-docente acredita que “ninguém irá para o ensino com a instabilidade que se verifica” e a “falta de respeito pela figura do professor dentro e fora da escola”.

Diz sentir “saudades de ensinar“, mas só admite um regresso se lhe fossem garantidas despesas de deslocação e uma “colocação no mesmo local durante quatro anos”, para não precisar de “estar sempre a mudar os filhos de escola”.

“Tsunami de aposentações”

Luís Sottomaior Braga, professor de História e Geografia de Portugal, afirma que o problema da falta de professores “tem causas complexas e múltiplas. Demográficas, sociais, económicas e até culturais e de mentalidades”.

“Os políticos degradaram, com ação política intencional, a imagem social dos professores. Qualquer professor sabe que outros profissionais acham legítimo e normal dizer coisas negativas da nossa profissão”, realça.

Uma profissão desprestigiada não é atrativa. E os próprios professores dizem, e com razão objetiva, a jovens para não se deixarem seduzir pelos encantos deste oficio”, refere o antigo docente.

Segundo Luís Sottomaior Braga, “é mal pago, tem horários excessivos, está carregado de burocracia inútil, é instável, implica trabalhar longe da família e anos de precariedade sem garantias”.

O docente acredita que ainda não chegamos ao “momento pior”, porque “a maioria dos professores que faltam são para contratos de substituição não completos e transitórios”.

“E, mesmo sem resolver o problema de forma estrutural — o que implicaria que quem governa prescindisse dos seus preconceitos, e governasse com base em análises racionais — ainda se podia minorar o problema, um ou dois anos, antes do tsunami de aposentações”, sublinha.

“Em última análise, por causa de medidas irracionais e economicistas dos vários governos — cortes nos benefícios sociais e laborais, falta de futuro profissional, mau salário, instabilidade, degradação do estatuto, excesso de burocracia, agressões e indisciplina, desconsideração dos pais, má gestão das escolas, sistemas de avaliação de desempenho absurdos e norma travão — não há quem aceite horários de substituição”, nota Luís Sottomaior Braga.

Educação “está pelas ruas da amargura”

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) fala em “pandemia da educação“, uma área que “não é bem tratada nem acarinhada pelos responsáveis políticos”.

“Aqui culpo também muito o Ministério das Finanças porque são eles que fazem mexer o país. Investem muito pouco na educação e por isso é que as pessoas, ao contrário do século passado em que era uma profissão aliciante e atrativa, hoje fogem do ensino”, justifica.

“A carreira docente está pelas ruas da amargura e os nossos jovens, que percebem aquilo por que passa um professor, não querem seguir a carreira”, conta ainda.

Para resolver a “pandemia da educação” e a falta de professores, o responsável aponta várias soluções, que devem ser aplicadas “urgentemente”.

“É preciso tornar a profissão menos burocrática, pois o professor trabalha muito mais do que 35 horas semanais em virtude da imensa burocracia, e é necessário torná-la mais atrativa em termos salariais, bem como conceder mais autoridade aos professores e diminuir o número de alunos por turma“, adianta.

Para Filinto Lima, “não faz sentido termos professores com 10, 11, 12 turmas”. “Estamos a falar de uma pandemia da educação e são necessárias soluções imediatas, que devem passar por abrir um concurso extraordinário de professores contratados”, aclara o dirigente.

“Estamos a falar de professores muito experientes e que são muito maltratados pelo sistema. A cada dia 31 de agosto dão-lhes um valente pontapé e passado uns dias votam a ir buscá-los. Repete-se a situação a cada ano letivo“, lamenta.

“Estão todos desiludidos”

Apesar das dificuldades, há quem, por “paixão pelo ensino“, regresse às salas de aula. É o caso de Bárbara Basto, professora de Português há mais de 15 anos.

Desistiu da profissão em 2014 e regressou este ano letivo, num horário de substituição por licença de maternidade da titular.

A docente lamenta as dificuldades que os professores têm de enfrentar. “Na realidade, há já muito tempo que considero o sistema de ensino preso a estruturas que já não se adequam e não servem nem alunos, nem professores”, afirma.

“Estão todos desiludidos. Para aprendermos temos de estar motivados e só estamos motivados se quem nos ensina estiver motivado também. Muitos culpam os alunos, mas eles são apenas parte da equação”, afirma.

Bárbara considera “desolador” o facto de “os professores de contratados receberem menos que os professores efetivos com o mesmo tempo de serviço”.

“Claro que a vocação e a vontade de ensinar ajuda dentro da sala de aula, mas se deixar outra vez de ser suficiente para pagar as contas, volto a sair do ensino“, conclui a docente.

De volta ao passado: “professores sem habilitações”

Mais de 10 mil professores saíram da profissão e não estão para voltar porque as condições não são as mais favoráveis.

Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, sublinha tratar-se de um problema antigo e teme que haja um “regresso ao passado, ao que se verificava nos anos 1990, quando professores sem habilitação para o ensino davam aulas“.

“O decreto-lei sobre a formação de professores enviado para os reitores já prevê que os jovens com formação inicial se profissionalizem em serviço”, explica.

“Isto permite ir buscar alunos a outros cursos, como Engenharia ou outra área. Já foi permitido no passado, quando não havia professores suficientes”, lamenta.

O secretário-geral da Fenprof pede medidas urgentes para combater a falta de professores, numa altura em que, após o arranque do 2.º período, ainda existem milhares de alunos sem um ou mais professores.

Também André Pestana, coordenador nacional do Sindicato de Todos os Professores (STOP) pretende a adoção de medidas para mitigar a carência de professores.

O dirigente sindical diz que as “condições de trabalho degradadas” são a origem do problema e alerta para os perigos da falta de habilitações para a docência, porque “já se está a aceitar professores sem formação específica”.

“Esta situação reflete uma péssima e irresponsável gestão dos recursos humanos por parte do Ministério da Educação, está a prejudicar profundamente milhares de alunos e só pode ser resolvida quando a docência se torne mais apelativa e minimamente digna”, sublinha o dirigente.

Em números

O número dos estudantes inscritos em cursos superiores de Educação em Portugal caiu cerca de 75% durante as últimas duas décadas. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), há 20 anos eram quase 52 mil.

No ano letivo 2020-2021 estavam cerca de 13 mil estudantes inscritos. Já no que se refere a aposentações, em 2021 reformaram-se cerca de dois mil professores, sendo este o número mais elevado desde 2013.

A estimativa da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) é de que, até ao ano 2030, 52 mil professores se vão reformar, um número que corresponde a quase 60% dos docentes que se encontram no ativo neste ano letivo.

Segundo um estudo apresentado há dois meses pela Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, em colaboração com a DGEEC, será necessário contratar 34,5 mil profissionais até ao final da década, para assegurar que não haverá falta de docentes nas escolas.

O vencimento-base de um docente contratado é de 1536,90 euros. Dependendo do escalão do IRS, o vencimento líquido encontra-se entre os 1049,70 (não casado e sem filhos) e o máximo de 1189,56 euros (casado, um titular, com dois filhos). A este valor, acresce o subsídio de refeição, de 4,77 euros/dia.

ZAP //

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