Narendra Shrestha / EPA

A nova primeira-ministra interina do Nepal, Sushila Karki.
Revolução inédita, à moda da Geração Z. Fartos da política tradicional, nepaleses escolheram nova líder do país em votação online, pouco depois de deitarem abaixo o governo, nas ruas.
Say, do you remember? Dancin’ in September? Tal como os Earth, Wind & Fire, os nepaleses certamente nunca vão esquecer o setembro que estão a viver.
Pelo menos 72 pessoas morreram e centenas ficaram feridas às mãos das forças de segurança, durante tumultos que levaram à queda do governo no passado dia 9 de setembro, sob acusações de corrupção contínua. O país (incluindo o próprio parlamento) esteve a arder na semana passada, depois de o primeiro-ministro KP Sharma Oli, líder do 14.º governo desde 2008, se ter demitido.
Aos olhos de boa parte dos cerca de 30 milhões de nepaleses, a política tradicional nunca resultou, antes e desde que a monarquia foi abolida, há 17 anos. Agora, perante um país literalmente desgovernado, a Geração Z, protagonista dos protestos, levou a cabo algo nunca antes visto numa democracia eleitoral: recorreu ao Discord (plataforma norte-americana gratuita de mensagens e videochamadas, estilo Skype, muito usada por gamers) para escolher o próximo líder do país — e assim aconteceu.
A aplicação foi uma das redes sociais banidas pelo governo, no início do mês, num movimento que censurou também o acesso ao Instagram, X, Youtube e outras plataformas, sob a premissa de que não colaboraram com a justiça no combate a abusos online, nomeadamente fraudes.
A experiência altamente radical levou a uma escolha alegadamente democrática, transparente e direta: Sushila Karki, antiga presidente do Supremo Tribunal do Nepal, assumiu o cargo de primeira-ministra interina na sexta-feira.
A iniciativa foi organizada pelo grupo Hami Nepal, ligado à Geração Z e responsável pelos protestos, que conta com mais de 160.000 membros. Através do canal do Discord “Youth Against Corruption”, mais de 10.000 pessoas participaram num debate intenso sobre o futuro do país, com transmissão no YouTube para cerca de 6.000 outras pessoas que não conseguiram aceder à plataforma.
“Muitos de nós [no grupo do Discord] não sabíamos o que significava dissolver o parlamento ou formar um governo interino, mas estávamos a fazer perguntas, a obter respostas de especialistas e a tentar descobrir juntos”, adianta à Al Jazeera uma manifestante de 25 anos, licenciada em Direito, que se juntou ao debate na rede social.
Depois de horas de discussão, com contactos, em tempo real, estabelecidos com possíveis candidatos a chefe de Executivo, ocorreu uma votação virtual, que permitiu uma decisão em tempo real que culminou na seleção de Karki, de 73 anos, conhecida pelos esforços de combate à corrupção, para o cargo.
“Não queria vir para aqui“, admitiu mais tarde a nova líder do país, em discurso dirigido à nação: “o meu nome foi trazido das ruas”.
“Não ficaremos [no cargo] mais de seis meses em nenhuma situação. Cumpriremos as nossas responsabilidades e comprometemo-nos a entregá-las ao próximo parlamento e aos próximos ministros”, disse ainda Karki.
O recurso inédito ao Discord trouxe, claro, desafios e preocupações. A plataforma abre portas à manipulação por utilizadores infiltrados ou pelo uso de múltiplas contas para influenciar votos. Para combater a desinformação, os organizadores criaram um subespaço na plataforma dedicado a fact-checking, onde já desmentiram rumores sobre encontros entre líderes de protestos e figuras políticas ou sobre cidadania de participantes.
Mas “este é o futuro”, acredita o jornalista Pranaya Rana. “Podemos continuar nos dias de discursos em palcos com microfones ou habituar-nos a falar livremente em plataformas online”.
“É muito mais igualitário do que um fórum físico ao qual muitos podem não ter acesso. Por ser virtual e anónimo, as pessoas também podem dizer o que quiserem sem medo de retaliações”, justifica ainda.
As eleições gerais foram agendadas para março.
É dos fenómenos sociais mais surpreendentes do século, no entanto, tem passado nos grandes media apenas em notícias de segundo plano. É uma vitória esmagadora da internet e das redes sociais sobre métodos esclerosados de ditadura clássica. Praticamente, só falta aos nepaleses um governo de IA.
Boa sorte e que tudo corra pelo melhor…. Não percam o próximo episódio por que nós também não.