E inventamos flautas, e escrevemos poesia. Mas, no momento da incerteza, os outros só estorvam. Recuperamos António Damásio.
“Quanto tempo é que isto vai durar?”. Ou “Temos comida que chegue em casa? E água?”. “Será que o supermercado ainda está aberto?”.
Estas perguntas foram uma realidade no já famoso dia 28 de Abril de 2025, o dia do apagão na Península Ibérica.
Portugueses e espanhóis foram a correr para os super e hipermercados (os que estavam abertos) e mercearias, com medo de um apagão prolongado, e com medo que não tivessem um “kit de sobrevivência” em casa. Mesmo que isso implicasse levar 100 latas de atum para casa – para devolver no dia seguinte.
“Desde que eu esteja a salvo…” – os outros que se desenrasquem também. Mas, primeiro, eu.
A este propósito, com base neste instinto de sobrevivência, recuperamos palavras de António Damásio, no seu livro A estranha ordem das coisas – a vida, os sentimentos e as culturas humanas.
Os insectos sociais
O famoso neurologista faz uma comparação entre humanos e insectos sociais: “Não sabemos ao certo quando os humanos começaram a fazer luto, a reagir a perdas e a ganhos, a comentar a sua condição, e a fazer perguntas inconvenientes quanto à origem e ao destino das suas vidas”.
Há indícios que estes momentos começaram, no mínimo, há 50 mil anos – algo que é uma amostra dos 100 milhões de anos de insectos sociais (e uma amostra ainda mais pequena dos milhares de milhões de anos na história das bactérias).
Os seres humanos não descendem diretamente dos insectos sociais. Ou das bactérias.
Mas António Damásio lembra três pontos importantes. O primeiro: as bactérias, sem cérebro e sem mente, defendem o seu território; travam guerras e agem segundo algo equivalente a um código de conduta.
O segundo: insectos empreendedores que criam cidades, sistemas de governação e economias funcionais.
E depois há os seres humanos – que inventam flautas, escrevem poesia e acreditam em Deus; conquistam o Planeta e o espaço em seu redor, combatem doenças para atenuar o sofrimento.
Mas são os mesmos que “não hesitam em destruir outros seres humanos para seu ganho pessoal, inventam a internet, descobrem maneiras de a transformar num instrumento de progresso e de catástrofe, e, ainda por cima, se interrogam sobre as bactérias, formigas, abelhas – e si próprios”.
Reforçamos: “não hesitam em destruir outros seres humanos para seu ganho pessoal”.
Embora haja aqui outra perspectiva: antes de uma viagem de avião começar, ouvimos a indicação clara – é preciso colocar a máscara de oxigénio primeiro em nós, só depois nos outros; porque só assim conseguimos ajudar outras pessoas.
“É possível encontrar um caminho que não exige escolher entre cuidar de si ou dos outros. Em vez disso, podemos substituir o “ou” pelo “e” e encontrar um equilíbrio que não prejudique nenhuma das partes”, defende a psicóloga Maria Helena Fernandes.
Porque é “importante lembrar que cuidar de si mesmo não é egoísmo, mas sim uma forma de garantir que possamos cuidar dos outros de maneira saudável e sustentável”.
No momento do desespero… Um aplauso para quem pensa primeiro na sobrevivência dos outros. Porque há o risco de destruição entre humanos, quando todos os humanos já estão em risco de destruição.
Apagão na Europa
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“Acreditamos em Deus mas não hesitamos em destruir outros seres humanos”: o apagão e os insectos sociais