Violência, morte e destruição deixam marcas persistentes na mente. Há 50 anos, um estudo com veteranos do Vietname nos EUA ampliava a visão sobre a verdadeira dimensão do horror.
O último tiro foi há exatamente 50 anos, a 30 de abril de 1975. Mas a guerra não acabou aí.
A guerra do Vietname foi um dos conflitos militares mais prolongados do século XX. Iniciada em 1955, logo após a derrota da potência colonialista França, só terminou em 1975, com a vitória das forças comunistas do norte e do sul do país e a derrota do Vietname do Sul, apoiado pelos Estados Unidos, deixando um saldo de 3,8 milhões de mortos.
O que ficou escrito sobre a guerra do Vietname e as suas consequências preenche bibliotecas inteiras. Porém, José Brunner, professor emérito da Universidade de Tel Aviv, destaca um aspeto em particular: o reconhecimento e compreensão do impacto psíquico e social das guerras.
Pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, sabe-se que os soldados continuam a sofrer devido às vivências de violência, muitas vezes por muito tempo após o fim dos conflitos. Alguns eram acometidos de tremores intensos e ataques de pânico, outros recusavam-se a alimentar-se. A medicina não tinha respostas e, de acordo com o espírito da época, os pacientes ou eram descartados como mentirosos ou entregues à autocura.
Neste ponto, o Vietname foi um divisor de águas: em 1972, o psiquiatra Chaim F. Shatan, que tratou veteranos da guerra, publicou no jornal The New York Times um relatório sobre a “síndrome pós-Vietname“. Descreveu como os pacientes eram atormentados por sentimentos de culpa, como tinham sido brutalizados e se sentiam profundamente alienados em relação aos outros seres humanos.
“A característica mais pungente é a dúvida torturante na própria capacidade de amar outros e de aceitar afeto. Um veterano disse: ‘Espero conseguir aprender a amar como aprendi a odiar. E eu odiei mesmo! Mas amor é uma palavra bem grande.'”
Stress pós-traumático: e o Vietname?
O artigo de Shatan foi vital para compreender o que a guerra provoca nos seres humanos, explica Brunner: “Foi, na verdade, a primeira constatação de que a guerra não acaba quando soa o último tiro, porque os soldados continuam a levá-la, invisível, consigo.”
Na década de 1980, a Sociedade Psiquiátrica Americana reconheceu oficialmente como doença o transtorno de stress pós-traumático (TEPT). Um estudo realizado em 1983 por ordem do Congresso dos EUA revelou que 15% dos veteranos – um total de 400 mil homens – sofriam do transtorno.
Numa repetição da pesquisa, 40 anos depois, a conclusão foi que um quinto deles ainda apresentava o distúrbio, e que a taxa de mortalidade entre os afetados era o dobro da dos demais veteranos. Com terapias e medicamentos, é possível curar ou, no mínimo, amenizar o TEPT, e na maioria dos casos a gravidade diminui com o tempo.
Entretanto, do outro lado do Pacífico: “Estou seguro de que o número de soldados vietnamitas que sofriam de traumas era muito grande”, estima o especialista em Vietname Martin Grossheim, da Universidade de Seul. “No entanto, isso nunca foi abordado no país.”
O motivo principal é que o Partido Comunista do Vietname prescrevia exatamente – e prescreve até hoje – o que dizer ou não sobre a guerra, e “problemas psíquicos não se encaixavam na imagem oficial de guerra heroica contra os americanos”, explica o vietnamólogo.
No entanto, uma prova de que os traumas existiam é o exemplo do ex-soldado Bảo Ninh, autor de The Sorrow of War (A Dor da Guerra), de 1991, cujo protagonista procura no álcool refúgio das lembranças da guerra e sofre uma profunda alienação em relação à sociedade. Publicada originalmente no Vietname em versão mimeografada, em 1987, como Nỗi buồn chiến tranh, a obra foi imediatamente proibida.
Quatro dimensões do pós-trauma
A superação do trauma não é apenas uma questão pessoal, enfatiza Brunner: “Não se trata apenas de terapias individuais. Não basta que todos os atingidos se deitem no sofá, sejam tratados e está tudo bem. A questão é como a sociedade lida com a guerra. E isso, por sua vez, afeta os indivíduos.”
Na opinião do especialista, a confrontação social tem pelo menos quatro dimensões.
Em primeiro lugar, há os rituais da memória. Depositam-se coroas de flores nos cemitérios? Há eventos memoriais públicos? Os soldados são honrados como heróis, ou antes vistos como criminosos – como os veteranos americanos do Vietname, que no pós-guerra eram execrados em seu país como “assassinos de bebés”?
A segunda dimensão é a das narrativas populares: como o conflito é representado em livros escolares, filmes, romances. A terceira é se os países envolvidos chegaram a uma reconciliação. E a quarta é se a sociedade reconhece os delitos e o tormento psicológico dos soldados, ou se os nega.
Falando do ponto de vista de um historiador, para quem décadas não são muito tempo, num processo desses, Grossheim frisa que “nas primeiras décadas, a negação é perfeitamente normal”.
O professor Brunner complementa que – tanto no plano individual como social – a repercussão de uma guerra dura décadas. No Vietname, há 50 anos, o fim das lutas foi celebrado em desfiles, programas de auditório e discursos políticos – porém sempre dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Partido Comunista, para o qual o que contava era autoencenar-se como garante do êxito da nação, ressalva Grossheim.
“Depois da vitória sobre os franceses, vem a vitória sobre os ‘imperialistas americanos’ e a bem-sucedida política reformista.” O vietnamólogo refere-se às reformas que, desde finais dos anos 1980, transformaram a economia vietnamita numa das de mais rápido crescimento, em todo o mundo.
Reconciliação assimétrica
Ocorreu também uma espécie de conciliação, embora com uma assimetria bastante peculiar: enquanto os americanos são bem-vindos, com os antagonistas sul-vietnamitas não se fala abertamente sobre o ocorrido.
O sofrimento dos soldados do sul só é reconhecido a contragosto, de modo que, terminada a guerra, os seus cemitérios são profanados e, mais tarde, negligenciados. Os familiares, expressamente proibidos de cuidar das sepulturas.
Isso só mudou em 2009, quando o governo voltou a permitir o acesso aos cemitérios. “Foi um contributo importante para a reconciliação nacional”, frisa Grossheim. Porém, “um passo ainda maior no sentido da reconciliação com o antigo inimigo seria as autoridades vietnamitas permitirem aos familiares buscar tanto os restos mortais dos caídos como os soldados desaparecidos”.
O paradeiro dos restos mortais de centenas de milhares de soldados continua desconhecido, cinco décadas depois. No Vietname, onde o culto aos ancestrais continua a ser parte da cultura viva, muitos acreditam que, só com um enterro, o espírito dos mortos descansará e encontrará a paz.
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