Dizemos o nosso nome, o motivo pelo qual ligamos, a localização, o número de contribuinte… e depois repetimos tudo porque o processo recomeçou.
Estava a regressar de férias, vinha pela A25 e, de repente, em plena auto-estrada, o seu carro avariou. Conseguiu parar numa área de serviço para depois ligar ao seguro, para ter reboque e táxi para casa.
Até aí, pensava que o maior problema era mesmo a avaria do carro. Mas quando começa a ouvir a voz do outro lado, ao telefone, começa logo a perceber que afinal está a começar outro problema: a Inteligência Artificial (IA).
Pedem-lhe o nome completo, depois a matrícula, depois o motivo pelo qual ligou, depois a sua localização, depois o nome da oficina para qual quer enviar a viatura.
Nada extraordinário. São dados essenciais para aquela situação.
Problema: num dos campos que aquela voz amiga pede, ela própria diz que não percebeu. Pede para repetir. O proprietário repete. Ela não percebe outra vez. Repete outra vez e, com pontaria, tem que recomeçar o processo.
“Lamentamos, mas não foi possível concluir o seu pedido. Contacte-nos por meios alternativos”.
Passaram 30 ou 40 minutos e o proprietário ainda nem chamou o reboque.
Telecomunicações
No dia seguinte, já em casa, tem um problema na caixa que liga à televisão, a box; é um dilema nas definições dos canais pagos, numa confusão que mistura televisão, apoio técnico e facturação.
Pega no telemóvel, tenta o já famoso chatbot – que, ou está indisponível, ou fica sem responder, ou diz que não percebe qual é o problema.
Espreita uma factura, vê qual é o número de telefone de apoio ao cliente, liga.
Ouve 9 opções. Volta a ouvir. Confirma que nenhuma delas é a mais adequada.
Mesmo telefonando através do número de telefone fixo, que está associada à conta, uma voz amiga pede o número de contribuinte, ou de cliente, ou a morada, ou o motivo pelo qual está a ligar.
Espera por uma pessoa real, para falar com ela.
Já se passaram 15 ou 20 minutos e ainda nem falou com ninguém.
Electricidade
Dois dias depois, a luz falha lá em casa. Liga para a fornecedora e lá vem a voz amiga, robotizada, que lhe pede para dizer (e não carregar em teclas) o nome, o problema, a morada, a identificação…
Outra vez: “Lamentamos, mas não conseguimos perceber. Aguarde por um assistente”.
Quase meia hora depois, lá fala com uma pessoa a sério.
“Enlouquecem”
O que escrevemos até aqui não é ficção. E só suporta o desabafo recente de João Miguel Tavares, que sugere “exterminar” os assistentes digitais.
No Público, o comentador escreve que, diariamente, “há milhares e milhares de portugueses a espumar de raiva e a enlouquecer enquanto falam com assistentes digitais supermodernos que parecem ter a inteligência de um ZX Spectrum 48k”.
João Miguel pede às empresas para não deixarem os clientes a comunicar com computadores – enquanto estes são “tão burros e limitados”.
“Os assistentes digitais não estão a ajudar a nossa vida nem um bocadinho. Raramente respondem ao que queremos. O nosso problema nunca está previsto nas opções disponíveis”, lamenta, acrescentando que os clientes ficam “desesperados”, quase a rezar que ouça um ser humano no outro lado da linha.
João Miguel Tavares acha que os assistentes digitais são uma “praga”, que apenas envolvem o cliente numa espiral em que fica perdido em respostas e perguntas circulares, sem sair dali.
O comentador – que usa por exemplo o ChatGPT todos os dias – tem noção de que a IA “é um mundo espantoso, com infinitas possibilidades”. Mas, neste contexto, o ser humano é mais fiável e eficaz. Ainda rareia a tecnologia realmente produtiva neste apoio ao cliente.
Um estudo mostrou que 80% dos inquiridos ficaram mais irritados nessas conversas com robots; e 72% acham que as conversas com chatbots são uma perda de tempo.
Muitas vezes, são.