Utsuro-bune: a lenda japonesa sobre um estranho navio e a sua misteriosa passageira

Hyoryu-ki-shu

Utsuro-bune, o “navio vazio”, pintura de 1868 incluída em “Hyoryu-ki-shu” (“Arquivos de náufragos”)

No folclore japonês, há uma curiosa lenda de um barco estranho que veio do mar sem que ninguém soubesse a sua origem e do qual desembarcou uma enigmática mulher, que, não falando japonês, não conseguiu comunicar com a população local — e foi devolvida ao seu navio, para se perder no horizonte.

No folclore japonês, a lenda do Utsuro-bune (também conhecido como Utsuro-fune ou Urobune, algo como “navio oco” ou “navio vazio”), conta um episódio misterioso que envolve uma embarcação peculiar e o seu igualmente enigmático passageiro.

A narrativa foi incluída em várias obras literárias de todo o Japão, indicando um fascínio cultural profundamente enraizado por esta misteriosa chegada.

Abrangendo várias regiões, como Hitachi, Kaga, Echigo, e territórios históricos como Owari no Kuni, Atsuta e Iyo, a história descreve um barco de design invulgar que chega do mar.

A embarcação, com a forma de um incensório ou de uma tigela de arroz, era feita de pau-rosa e lacada a vermelho, com um casco revestido a bronze para proteção contra os corais.

O episódio terá tido lugar por volta de 1803, quando pescadores de Harayadori, na província de Hitachi, encontraram a embarcação à deriva. No interior, encontraram uma jovem mulher, que se distinguia pela sua pele cor-de-rosa pálida e cabelo ruivo, vestida com roupas desconhecidas e incapaz de falar japonês.

A sua aparência e a presença de vários objetos e textos estrangeiros a bordo da embarcação suscitaram a curiosidade e a confusão dos locais.

National Archives of Japan / Wikipedia

A lenda de Utsuro-bune em “Ensaios de Yashiro Hirokata”, 1825

Apesar do seu comportamento amigável, a mulher guardava ferozmente uma caixa misteriosa, que os habitantes locais especulavam poder conter algo tão sinistro como uma cabeça cortada — um rumor baseado em incidentes anteriores semelhantes.

A lenda foi documentada em quatro grandes textos do século XIX, com as descrições mais vívidas a aparecerem em “Toen shōsetsu”, de Kyokutei Bakin, e em “Ume-no-chiri”, de Nagahashi Matajirō.

Estes relatos detalham os atributos físicos do navio e da sua passageira, juntamente com a reação local, que vai desde o medo especulativo à reverência mística.

A lenda de Utsuro-bune lançou acesos debates entre os amantes de ovnilogia; algumas interpretações sugerem que a embarcação poderá ter sido um objeto submarino não identificado, comparando-o com outros fenómenos OVNI, como o incidente da Floresta de Rendlesham, em Inglaterra — talvez pela forma do estranho navio, semelhante à de uma cápsula Apollo, da NASA.

Outros propõem teorias mais fundamentadas, como trocas culturais influenciadas por naufrágios envolvendo navios estrangeiros, possivelmente ocidentais, durante o período de reclusão nacional do Japão.

O cabelo ruivo da passageira e as suas roupas elaboradas poderiam simbolizar a uma imagem “alienígena” associada a entidades estrangeiras, frequentemente europeias, no folclore japonês.

Segundo o LBV, historiadores como Kunio Yanagita e Kazuo Tanaka dão-nos uma ideia de como estas histórias podem ter surgido e evoluído.

Yanagita sugere que o tema do salvamento marítimo é um quadro narrativo comum no folclore japonês, possivelmente simbólico de intercâmbios culturais da isolada nação insular com culturas ocidentais.

Num ensaio intulado “Terá um Encontro Imediato do 3º grau ocorrido numa praia japonesa em 1803?“, Tanaka relaciona a lenda com o contexto sócio-político do Japão e a influência dos naufrágios de baleeiros ocidentais e naus portuguesas no folclore local.

Nau portuguesa, pintura de Kanō Naizen (1570–1616)

A lenda pode também refletir mudanças sociais no Japão do início do século XIX, marcadas por vagas de imigração e por um fascínio pela legitimação de laços estrangeiros através de narrativas mais ou menos folclóricas.

Qualquer que tenha sido a sua origem, a lenda de Utsuro-bune encerra uma mistura de mistério, interação cultural e folclore especulativo que continua a intrigar tanto os estudiosos como o público — sendo ainda hoje um testemunho da interação dinâmica entre história, cultura e mito no Japão.

Armando Batista, ZAP //

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