Na Idade Média, o amor era considerado uma doença (e havia curas)

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“Amor Entre as Ruínas”, Edward Burne-Jones (1833–1898)

Há vários exemplos na literatura medieval que alertam contra os perigos do amor — uma “doença” que até podia provocar a morte.

Na Idade Média, o amor podia ser definido de várias maneiras. De um ponto de vista religioso, o termo era sinónimo de voluntas, de caridade, de dedicação ao próximo. Este tipo de amor era defendido nos textos bíblicos e na literatura moralizante.

Mas o amor também podia ser definido como paixão ou “eros”, resultado da idealização do amado.

A associação do amor à paixão encontra-se já no De amore, escrito por Andreas Capellanus no século XII. Trata-se de um tratado científico e prático que descreve as regras a seguir nas relações amorosas. Define o amor como uma paixão inata, que resulta da contemplação da beleza e de um pensamento desordenado sobre a forma da pessoa amada.

Capellano classifica o amor em diferentes tipos: o amor verdadeiro, entre pessoas de igual posição social; o amor vulgar, que seria o amor carnal; o amor impossível e o amor desonesto. O autor condena este último tipo de amor, que é contrário aos preceitos morais.

O livro influenciou toda a literatura, a medicina e a sociedade medievais. Estabeleceu também a ideia de que o amor era uma doença, com base na teoria dos quatro humores corporais. A saúde era mantida quando esses humores (sangue, fleuma, bílis negra e bílis amarela) estavam equilibrados.

A visão dos médicos

O médico Constantino, o Africano, na sua tradução de um tratado sobre a melancolia, estabelece uma relação direta entre o excesso de bílis negra e a doença de amor.

A causa da doença era um excesso de bílis negra, o que explicava a associação do “amor” com o “amaro” (amargo). Segundo ele, esta doença afetava o cérebro e podia provocar pensamentos e preocupações intensas no amante. Na mesma linha, a tese de Boissier de Sauvages associava a doença do amor à melancolia.

Segundo o Lilium Medicinae de Bernardo De Gordonio, a causa da doença era o “amor das mulheres” e podia levar à morte do doente. Entendia-se que o homem ficava obcecado com as imagens da sua amada e armazenava-as no seu cérebro.

Nesta circunstância, a temperatura do corpo, o fluxo sanguíneo e o desejo sexual aumentavam. Gordonius explicou no seu manual os sintomas, entre os quais se destacam a cor amarelada da pele, a insónia, a falta de apetite, a tristeza constante pela ausência da amada, etc. Este estado era considerado uma doença chamada amor hereos ou aegritudo amoris.

Arnau de Vilanova, médico medieval, atribuía esta doença a um julgamento erróneo da “memória cognitiva”, localizada no cérebro. O resultado era um aumento da temperatura provocado pela antecipação do prazer sexual no cérebro.

Segundo o Dragmaticon philosophiae de Guillem de Conches, e mais tarde também segundo Gordonius, o cérebro estava dividido em três compartimentos.

No primeiro, situado na parte superior da testa, encontrava-se a virtude sensitiva. No segundo, atrás da testa, estava a consciência sensitiva, onde o paciente julgava as imagens como positivas ou negativas.

No terceiro compartimento, situado sob a parte inferior do pescoço, estava a memória sensitiva, como um arquivo de imagens computorizadas. O homem, candidato a idealizar a imagem da amada, via a sua função imaginativa alterada.

A doença de amor na literatura

O amor como doença é um tema constante nos textos literários da época. Lucrécio, em De Rerum Natura, dedica o livro IV ao tema do amor, considerando-o uma doença muito perigosa para o equilíbrio mental do ser humano.

Garcilaso de la Vega descreve a doença do amor como uma condição que pode levar à loucura e à morte. No seu soneto XIV, explica como a sua paixão pelo amor o arrastou para o desespero, onde não consegue encontrar descanso nem paz.

A doença encontra-se também em personagens literárias conhecidas. O Libro de Buen Amor do Arcipreste de Hita mostra a luta entre o espírito cristão do amor de Deus e o “amor louco” que consome o amante. Em El Corbacho, do Arcipreste de Talavera, o “amor louco” é descrito como a causa direta da perturbação mental e até da morte.

Em Cárcel de Amor, de Diego de San Pedro, o protagonista, Leriano, é um exemplo da “doença do amor”. Sofre de uma paixão profunda por Laureola e, por isso, perde o apetite e o sono, até ficar à beira da morte.

Em La Celestina, Calisto, doente de amor, manifesta um desejo sexual excessivo que o leva à loucura amorosa. Também Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, procura o objetivo final de fazer com que a sua amada Dulcineia conheça a extensão da sua paixão.

O protagonista Tirant, em Tirant lo Blanch, de Joanot Martorell, também sofria do “mal de amor”. Enquanto sofria por Carmesina, tinha falta de apetite, insónias, choros e suspiros.

Do mesmo modo, em Espill, de Jaume Roig, o sábio Salomon diagnosticou o protagonista nos seus sonhos como sofrendo de amor hereos devido a uma paixão excessiva pelo amor.

Haverá cura para a doença do amor?

A cura da doença incluía uma dupla recomendação: dieta e disciplina moral. A dieta prescritiva consistia em evitar o consumo de vinho, carne vermelha, leite, ovos, legumes e alimentos de cor vermelha.

A razão da proibição destes alimentos era o facto de incitarem o movimento do sangue e o desejo sexual. A pessoa doente de amor devia comer carne branca, peixe e beber água ou vinagre. Também era necessário suar e tomar um banho antes de comer.

Para além da dieta, recomendava-se dominar os impulsos carnais para subjugar a vontade: colocar uma placa de ferro frio sobre os rins – órgão onde se considerava residir o desejo -, dormir sobre uma almofada com urtigas, banhar-se em água fria, etc.

Com todo este programa de tratamento do amor como uma doença, concluiu-se que a causa principal de todos os males era deixar-se levar pelos instintos carnais. Uma vida virtuosa, livre de paixões excessivas, permitia alcançar a harmonia entre o corpo e a alma.

Afinal, o amor herético poderia levar à morte física e, pior ainda, à condenação da alma.

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