Morreu Manuel Cargaleiro, o mestre que viveu para dar cor à pintura

António Cotrim /Lusa

Manuel Cargaleiro faleceu aos 97 anos, em Lisboa

Morreu este domingo um dos mais cosmopolitas criadores de arte portuguesa. Manuel Cargaleiro tinha 97 anos; “morreu tranquilo, rodeado pelos seus, adormeceu”, informou a sua mulher, Isabel Brito da Mana, à Lusa.

Manuel Cargaleiro deixa uma vasta obra em Portugal e no estrangeiro, marcada pela inspiração no azulejo português, composições complexas, e uma paixão intensa por jogos de cor e luz.

O mestre Manuel Cargaleiro – para quem a cor e a luz eram “um prazer” – afirmou várias vezes que se sentia ceramista mesmo quando pintava a óleo. Não conseguia imaginar uma coisa sem a outra, uma vez que as duas práticas artísticas se influenciavam mutuamente.

“Quando pinto a óleo penso na cerâmica, e quando faço cerâmica, penso na pintura”, disse o mestre conhecido por dominar desde cedo a técnica do azulejo e cuja colaboração era frequentemente pedida por outros artistas que o admiravam pela perícia e originalidade.

Manuel Alves Cargaleiro nasceu em Chão das Servas, Vila Velha de Ródão, a 16 de março de 1927, e passou a infância numa olaria no Monte da Caparica, no concelho de Almada, para onde os pais se mudaram quando tinha apenas dois anos de idade.

Nessa olaria começou a fazer experiências com vidros e tinta, e adquiriu o gosto pela cerâmica, mas a sua criatividade veio a estender-se também a outros suportes, como a pintura e, além dela, a tapeçaria.

Apesar da paixão precoce pelas artes, estudou durante três anos Ciências Geográficas e Naturais na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, porque era um grande apreciador da natureza, como confessou, e só depois, em 1949, ingressou na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa.

“Eu sou o pintor das cores. Eu vivo para as cores, e isso é o resultado de eu olhar muito para a natureza”, afirmava.

As suas primeiras pinturas abstratas, intituladas “Microscopic Compositions”, surgiram mesmo da observação dos tecidos vegetais que o microscópio reproduzia, suscitando uma inspiração direta do mundo natural, ao seu redor.

Em 1952 realizou a primeira exposição individual, no Secretariado Nacional de Informação, em Lisboa, e, dois anos depois, quando era professor de cerâmica na Escola Secundária António Arroio, em Lisboa, surgiu a oportunidade de expor as suas peças na Galeria de Março, que funcionou na capital portuguesa entre 1952 e 1954.

No mesmo ano, apresentou as suas pinturas iniciais a óleo no Primeiro Salão de Arte Abstrata, conquistou o Prémio Nacional de Cerâmica e viajou pela primeira vez para Paris, onde conheceu a pintora Maria Helena Vieira da Silva, de quem ficaria amigo, e com quem viria a trabalhar intensamente, cerca de três décadas mais tarde, no processo de instalação dos painéis de azulejo da artista nas estações da Cidade Universitária e do Rato, do Metro de Lisboa, quando concebia os seus próprios painéis para a estação do Colégio Militar.

A sua obra foi fortemente inspirada no azulejo tradicional português, e também influenciada inicialmente pelo pintor e ceramista Lino António, o modernista que concebeu os vitrais da Aula Magna da Universidade de Lisboa e os frescos do átrio da Biblioteca Nacional de Portugal. O racionalismo e a sobriedade da arte francesa, das quais Cargaleiro posteriormente se afastou através do uso e intensa exploração da cor, também marcaram o seu ponto de partida.

Essa ampla pesquisa da cor, com “grande prazer”, como sempre dizia, fez com que alguns especialistas em arte lhe chamassem “o artista feliz”.

O mestre que viveu para dar cor à pintura

Até aos 95 anos continuou a trabalhar no ateliê, quase diariamente: “Passo horas nisto, e esqueço-me que estou a trabalhar”, dizia.

Em 1955, Manuel Cargaleiro foi agraciado com o diploma de honra da Academia Internacional de Cerâmica, no Festival Internacional de Cerâmica de Cannes, em França.

Até ao final dessa década, receberia duas bolsas de estudo na área da cerâmica, respetivamente em Faenza, Itália, e em Gien, na França.

Entretanto, fixou residência definitiva na capital francesa, onde viria a estabelecer o seu atelier, expandido a sua presença internacional.

Até ao final da década de 1970, realizou exposições individuais em Lisboa, Paris, Tóquio, Milão, Lausanne, no Porto, em diferentes cidades do Brasil. Foi também convidado para mostras coletivas em Almada, Genebra, Osaka, Seul.

Foi convidado pelo ministério francês da Cultura a conceber painéis cerâmicos para três escolas no país que o acolhera. Assim o fez.

Nos anos 1980 começou a explorar a tapeçaria, tendo sido convidado pelo Governo português a conceber uma dessas obras para o novo edifício na Organização Internacional do Trabalho, em Genebra.

A partir da década de 1990, predominariam na sua obra os padrões aglomerados e cromaticamente intensos onde continuaria a ser evocado o azulejo português, que tanto determinou o seu trabalho.

Em Castelo Branco, viria a ser criada a Fundação Manuel Cargaleiro, em 1990, com o objetivo de criar um museu dedicado à sua obra. Assim aconteceu, em 2005, primeiro no edifício histórico Solar dos Cavaleiros, mais tarde expandindo-se para o “edifício contemporâneo”.

Em 2014, nasceu no Seixal a Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, num projeto arquitetónico de Álvaro Siza, com objetivo de promover a arte contemporânea, a obra do mestre Manuel Cargaleiro e as coleções da sua fundação, quer através de temporárias, mas sobretudo através da divulgação da arte e do trabalho com jovens artistas, dando corpo à definição implícita na designação de Oficina.

Em 2017, no exato dia do seu 90.º aniversário, Manuel Cargaleiro foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique, pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa que o classificou de “artista completo”. Em fevereiro de 2023 recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Camões.

Castelo Branco atribuiu-lhe a medalha de ouro da cidade em 2022, e, nesse ano, o artista recebeu também o doutoramento ‘honoris causa’ pela Universidade da Beira Interior (UBI), sediada na Covilhã, cidade que faz parte da região onde nasceu, um prémio ao qual atribuiu, na altura, um significado “único”. No mesmo ano, a Câmara de Lisboa homenageou-o com a Medalha de Honra da Cidade.

Ainda em 2022, o mestre doou cerca de 1.900 peças de arte em cerâmica, avaliadas em 1,2 milhões de euros, à sua Fundação, sediada em Castelo Branco, e que detém um enorme acervo, reunido pelo mestre ao longo de 70 anos, entre obras suas e de outros artistas.

Mas antes, em 2019, o ceramista já havia recebido, em Paris, a medalha de Mérito Cultural do Governo português e a Medalha Grand Vermeil, a mais alta condecoração da capital francesa.

Último ano (de “Gratidão”) de Cargaleiro

No último ano teve patente as exposições “Eu Sou… Cargaleiro”, no Mosteiro de Ancede – Centro Cultural de Baião, no distrito do Porto, uma mostra de pintura na Casa Museu Teixeira Lopes – Galerias Diogo de Macedo, em Vila Nova de Gaia, intitulada “Cargaleiro, Pintar a Luz Viver a Cor”, e uma exposição de gravura no Fórum Cultural de Ermesinde, em Valongo, de nome “A essência da cor”. Este ano levou obras nunca expostas à sua oficina, no Seixal.

Reuniu-se ainda a Vhils (Alexandre Farto) na criação conjunta da obra “Mensagem”, destinada a exposição no Museu Cargaleiro, em Castelo Branco.

No passado mês de abril doou à sua terra natal, Vila Velha de Ródão, uma tela alusiva aos 50 anos do 25 de Abril, a que chamou “Festa da Gratidão”.

Gratidão é também a palavra usada pela sua mulher, Isabel Brito de Mana, para descrever a vida do mestre e o seu reconhecimento em Portugal.

Em declarações à agência Lusa, Isabel Brito da Mana lembrou este domingo o Museu Cargaleiro, em Castelo Branco, e a Oficina de Artes, no Seixal, sublinhando como a vida e a arte de Manuel Cargaleiro se conjugaram e cumpriram.

A vida de um dos mais cosmopolitas criadores de arte portuguesa, reconhecido através do mundo inteiro e presente nas principais coleções internacionais, que nunca esqueceu as suas ligações à terra natal, no distrito de Castelo Branco, e à margem Sul do Tejo, onde cresceu.

Em entrevista à agência Lusa, em setembro do ano passado, o mestre disse entender que havia “duas correntes no mundo: uma positiva e outra negativa”.

“Há os artistas que pensam que não há nada a fazer, e descrevem o destrutivo, por exemplo o [pintor anglo-irlandês Francis] Bacon. Tem uma pintura triste, violenta, agressiva. E [o pintor e ceramista francês de origem bielorrussa Marc] Chagall, que tem uma pintura de esperança, de beleza, de mensagem. Eu coloco-me deste lado. Eu gosto de criar algo que dê força, que anime e dê esperança.

E concluiu: “Eu pego nos pincéis e começo a pintar e não sei o que vai acontecer. Há tanta coisa que eu gostaria de fazer.”

Luto nacional no dia do funeral

O primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou que o Governo vai decretar um dia de luto nacional para o dia das cerimónias fúnebres deo Manuel Cargaleiro.

“Em acordo com Sua Excelência o Presidente da República, o Governo vai aprovar a declaração de luto nacional no dia em que se realizem as exéquias de Manuel Cargaleiro”, anunciou Luís Montenegro numa nota enviada hoje às redações.

No texto, o líder do executivo manifesta o seu “profundo pesar” pela morte Manuel Cargaleiro, que classificou de “artista multifacetado, conhecido do grande público sobretudo pela sua obra como pintor e ceramista”.

Cargaleiro dominou a cor e a geometria de forma marcante, imprimindo à arte contemporânea portuguesa um traço inconfundível”, escreve.

Luís Montenegro lembra que, ao longo da carreira, as criações de Manuel Cargaleiro “expressaram sempre a sua visão poética do mundo, construindo um legado reconhecível por diversas gerações de portugueses”.

Marcelo Rebelo de Sousa também manifestou o seu pesar pela morte de Manuel Cargaleiro. Tendo-o condecorado, em 2017, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique e, em 2023, com a Grã-Cruz da Ordem de Camões, o Presidente da República considera que teve “a oportunidade de homenagear essas singularidades em breve mensagem para o catálogo da última exposição que fez”.

Nesse texto, Marcelo Rebelo de Sousa saudou, e renova agora a saudação, “a sua obra jubilosa e luminosa, fiel ao passado e ao presente, a um tempo que é o nosso e que também foi o seu”.

O Presidente da República sublinha que “nunca esquecerá o último encontro com Mestre Cargaleiro, semanas atrás, na casa deste em Lisboa, em que continuava a sonhar projetos para o futuro e a acreditar na vida, sempre prestigiando Portugal”.

ZAP // Lusa

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