Cérebros velhos, novas aptidões: num novo estudo, uma equipa de investigadores da Fundação Champalimaud encontrou plasticidade surpreendente na visão em adultos.
Tal como acontece com as crianças pequenas, que conseguem aprender línguas muito rapidamente nos primeiros anos de vida, o nosso sistema visual também tem um “período crítico” durante os primeiros anos de vida em que ocorre um desenvolvimento rápido.
Após esse período, as mudanças tornam-se mais difíceis, seguindo o ditado antigo: “Burro velho, não aprende línguas“.
De facto, muitos tratamentos destinados a restaurar a visão, como os que são usados para as cataratas congénitas ou o “olho preguiçoso”, só são eficazes até aos 7 anos de idade.
Com o aparecimento de várias técnicas, já estabelecidas ou emergentes, para restaurar a visão em adultos, incluindo a terapia genética, os olhos biónicos e as cirurgias, é vital compreender se o cérebro adulto consegue processar novos sinais visuais.
“Se o cérebro adulto não tiver essa plasticidade ou adaptabilidade”, observa Noam Shemesh, investigadores da Fundação Champalimaud e autor principal do novo estudo, publicado a semana passada na revista Biology. “Os tratamentos dirigidos aos olhos podem revelar-se inúteis se o cérebro não for capaz de interpretar a informação recebida”
Curiosamente, acrescenta o investigador, existem vários exemplos na natureza, como pássaros que periodicamente estabelecem novas ligações no seu cérebro, ou os próprios humanos que observam uma breve janela de plasticidade após um AVC, que mostram que a adaptação em adultos é possível em determinadas circunstâncias.
“A questão central do estudo era explorar se o cérebro adulto dos mamíferos ainda possui a capacidade de se reorganizar, e mudar, mesmo depois de passado o período crítico de desenvolvimento”, diz Shemesh.
Uma novidade científica e técnica
Com a ajuda de um avanço tecnológico, os investigadores descobriram que, quando roedores mantidos no escuro desde o seu nascimento foram expostos à luz pela primeira vez na idade adulta – muito depois de ter decorrido o período crítico – os seus cérebros sofreram uma reorganização e adaptação significativas, revelando um grau de plasticidade notável.
Estas descobertas não só fornecem provas de que o cérebro adulto continua a ser altamente plástico, desafiando as crenças anteriores sobre a rigidez do cérebro adulto, como também abrem novas perspetivas para o desenvolvimento de tratamentos de reabilitação visual.
Como refere Noam Shemesh, o caminho para estas revelações foi repleto de obstáculos técnicos.
“Joana Carvalho, a nossa investigadora principal, enfrentou inúmeros desafios e até dúvidas por parte de alguns dos principais laboratórios do mundo, que consideravam o seu projeto impossível”, explica o investigador em nota de imprensa publicada no EurekAlert.
“Mas a perseverança da Joana valeu a pena. Sem a sua determinação e criatividade, nunca teríamos chegado a este ponto. É a Joana que merece todo o crédito“, admite Shemesh.
A investigadora portuguesa teve de ultrapassar a dificuldade sem precedentes de colocar um ecrã dentro do espaço confinado de um scanner de ressonância magnética para roedores, para conseguir projetar imagens no mesmo.
“Devido às limitações de espaço e de material, associado ao campo magnético ultra-elevado”, observa Joana Carvalho, “os estudos anteriores em roedores apenas mostravam flashes de luz. O nosso método permite-nos extrair informação mais detalhada do que os simples estímulos visuais intermitentes”.
A experiência
Com a sua nova configuração de ressonância magnética funcional (fMRI), a equipa apresentou aos animais estímulos complexos e padronizados e mapeou de forma não invasiva as propriedades cerebrais anteriormente apenas acessíveis através de técnicas invasivas.
“Inicialmente”, explica Joana Carvalho, “o desafio consistia em projetar imagens num espaço circunscrito e cheio de obstruções, assegurando que o rato as pudesse ver sem obstáculos”.
O campo magnético extremamente elevado da ressonância magnética, capaz de levantar um comboio, constituiu outro obstáculo substancial.
“Tivemos de contornar estes constrangimentos, utilizando espelhos e hardware especializado, para levar as imagens até onde era necessário. Ajudou o facto de os ratos estarem sedados, o que reduziu ao mínimo os movimentos, nomeadamente os movimentos espontâneos dos olhos”, nota a investigadora.
Depois de ultrapassados estes desafios, os investigadores propuseram-se explorar a adaptabilidade do cérebro adulto aos sinais visuais.
Utilizaram para isso um modelo em que os roedores foram criados no escuro, desde o nascimento até à idade adulta, muito depois do período crítico de plasticidade, assegurando desta forma que o cérebro destes animais ainda não tivesse passado pelos processos-chave necessários para a especialização visual.
Os animais foram então expostos à luz pela primeira vez dentro do aparelho de ressonância magnética. Este facto permitiu aos investigadores não só observar a resposta do cérebro ao seu primeiro contacto com estímulos visuais, mas também estudar a forma como este se poderia adaptar a esta exposição tardia, o que permitiu obter dois conhecimentos fundamentais.
Quando os animais foram expostos à luz pela primeira vez durante o exame de ressonância magnética inicial, os seus cérebros não apresentaram resposta organizada à informação visual.
Em vez disso, as suas células nervosas, em diferentes áreas, reagiram a uma vasta gama de estímulos, desde os mais aos menos detalhados. Além disso, o tamanho do campo receptivo dos neurónios – a área específica do campo visual a que respondem – era também maior nos ratos privados de visão, em comparação com o grupo de controlo.
Em conjunto, estes resultados sugerem que as células nervosas visuais dos ratos privados de luz careciam de especialização.
Após a exposição à luz, o cérebro dos animais começou a mudar. Mesmo no espaço de uma semana, as respostas visuais tornaram-se mais organizadas, de tal forma que os neurónios vizinhos começaram a responder a posições próximas no campo visual e as células começaram a mostrar uma maior especificidade.
Os campos receptivos dos neurónios tornaram-se também mais pequenos e mais seletivos em termos de espaço. Ao fim de um mês, os cérebros dos animais eram muito parecidos com os do grupo de controlo saudável.
“Surpreendentemente”, diz Shemesh, “em menos de um mês, a estrutura e a função do sistema visual dos animais privados de visão tornaram-se semelhantes às dos controlos. Embora a plasticidade tenha sido observada nos seres humanos, a sua interpretação continua a ser muito difícil”.
“O que estamos a ver aqui em roedores, que oferece uma visão dos mecanismos cerebrais que não é possível obter em estudos humanos, é um fenómeno que não foi observado antes: plasticidade em grande escala no cérebro adulto em toda a via visual, e não apenas localizada numa área cerebral específica, como demonstrado em trabalhos anteriores”, acrescenta.
Estudos anteriores recorreram a técnicas como a eletrofisiologia e à imagiologia do cálcio, que se focam em regiões cerebrais isoladas e não permitem uma visão global do sistema visual.
Estes métodos invasivos — embora forneçam leituras directas da atividade neural — podem levar à detecção de alterações não relacionadas com a plasticidade real, pelo facto de potencialmente introduzirem fatores de confusão, e devido à dificuldade de monitorizar as mesmas células em momentos diferentes.
Embora não tenha a especificidade de uma célula única e reflicta indiretamente a atividade neuronal, a IMR funcional facilita a medição longitudinal e não invasiva de áreas visuais na sua totalidade, com uma resolução muito elevada.
“Como resultado, uma das coisas intrigantes que pudemos observar”, revela Joana Carvalho, “foi que uma parte da via visual chamada colículo superior parece demorar mais tempo a adaptar-se em animais com privação visual, em comparação com outras áreas, como o córtex”.
“É algo que gostaríamos de explorar mais. Isto também realça a importância de uma visão integrada de todo o sistema, no mesmo animal, ao longo de vários períodos de tempo”, conlclui.
Implicações clínicas e perspetivas futuras
“Estamos agora em posição de começar a explorar se é possível prever quais os animais que podem ter uma visão melhorada ou deteriorada com base nas respostas de IRM do seu sistema visual”, observa Shemesh.
“Em animais com problemas de visão, gostaríamos de determinar quais os que mais beneficiarão de determinadas intervenções terapêuticas. Atualmente, é difícil para os médicos determinar, a partir de um exame de ressonância magnética, se o cérebro de um doente responderá a um determinado tratamento, o que leva a sofrimento e perdas de tempo desnecessários”, explica.
“Através da imagiologia pré-clínica, podemos começar a traçar as respostas ao tratamento em ratos, o que poderá não só aprofundar a nossa compreensão dos efeitos do tratamento, mas também acelerar o ritmo de desenvolvimento do tratamento em seres humanos, bem como orientar os médicos sobre os exames necessários para os seus doentes”.
As técnicas deste estudo são extensíveis a outros modelos de doenças animais, incluindo, por exemplo, a doença de Parkinson, que também está a ser estudada no Laboratório de IRM Pré-Clínica.
Uma vez que se conhecem problemas visuais subtis e precoces na doença de Parkinson, o método poderia ser aplicado para acompanhar as diferenças nas respostas do sistema visual ao longo do tempo, possivelmente revelando novos conhecimentos sobre a progressão da doença e as opções de tratamento em modelos animais.
“No contexto pré-clínico, esta técnica pode ajudar a identificar o momento ideal para os procedimentos de restauração e reabilitação visual, aumentando a eficácia de tratamentos como o transplante de células estaminais da retina”, conclui Shemesh.