O Governo dos Estados Unidos está a afogar-se num “mar de segredos”

David Lienemann / White House

Os EUA enfrentam muito mais ameaças à sua segurança nacional do que balões de espionagem ou documentos confidenciais descobertos nas casas de presidentes anteriores e atuais.

Cerca de 50 milhões de ameaças todos os anos. Esse é o número estimado de registos anualmente classificados como confidenciais, secretos ou ultrassecretos pelo governo dos EUA.

Os EUA têm um problema de superclassificação, que, dizem os especialistas, ironicamente ameaça a segurança do país.

Aqueles no campo de inteligência, junto com pelo menos oito comissões especiais ao longo das décadas, reconhecem o risco de segurança de quase 2000 trabalhadores que processam dezenas de milhões de registos confidenciais a cada ano, que podem ser vistos e potencialmente vazados ou extraviados por mais de 4,2 milhões de funcionários do governo.

Os registos federais sigilosos são tornados secretos com base em categorias definidas pelo Presidente com ordens executivas, não por lei. Esses registos podem incluir praticamente qualquer coisa que um funcionário do governo considere confidencial, secreto, ultrassecreto, sensível ou restrito.

Embora a classificação se destine a proteger a segurança nacional da nação – como dados de armas, planos e códigos militares – muitas vezes os registos sem conexão direta com a segurança nacional são ocultados, incluindo artigos de jornais já publicados, às vezes para evitar constrangimento ou responsabilidade da agência.

Excesso de confidencialidade

Especialistas e membros do Congresso reconhecem que 90% dos registos classificados não precisam de o ser.

A Comissão do 11 de Setembro concluiu que a classificação excessiva inibia a capacidade das agências de defesa de partilhar arquivos críticos, contribuindo para o sucesso dos terroristas em matar quase 3000 americanos. “Ninguém precisa de pagar os custos a longo prazo da superclassificação de informações, embora estes custos – mesmo em termos financeiros literais – sejam substanciais”, afirma.

O excesso de classificação leva a mais vazamentos de informações perigosas, de acordo com o Conselho de Desclassificação de Interesse Público, um grupo consultivo do Congresso que recomenda políticas ao Presidente sobre classificação.

Alguns funcionários do governo podem até acreditar que o sistema é muito secreto. Isso “pode encorajar vazamentos perigosos de informações dentro do Governo”, afirmou o relatório do conselho de 2020 pedindo a modernização do sistema.

Tudo começou com os fundadores

O sigilo do governo começou antes mesmo de os EUA terem um governo.

A Convenção Constitucional em 1787 foi realizada em segredo, e o Senado debateu a Declaração de Direitos a portas fechadas em 1791. O Congresso não publicou as suas leis aprovadas até 1795 – quase duas décadas após a fundação dos Estados Unidos e seis anos após a ratificação da Constituição.

Desde os primórdios do país, os Presidentes tentaram restringir as informações do público – e até mesmo do Congresso. George Washington manteve em segredo as  suas comunicações de tratado com a Grã-Bretanha em 1795, e John Adams escondeu negociações do tratado com a França em 1798, tudo em nome da segurança nacional.

Franklin D. Roosevelt foi o primeiro presidente a classificar documentos oficialmente. Emitiu a Ordem Executiva 8381 em 1940 para manter alguns registos militares ocultos. Sucessivos presidentes seguiram o exemplo, expandindo o sigilo ao longo das décadas. A ordem mais recente, emitida por Barack Obama em 2009, permanece até hoje.

Pai Natal e Conan

A classificação tornou-se tão prevalente que os resultados às vezes são sem sentido, às vezes nefastos e às vezes absurdos.

Lauren Harper, diretora de políticas públicas e assuntos governamentais abertos do National Security Archive, uma organização sem fins lucrativos que recolhe registos federais para historiadores, observa alguns dos piores exemplos de  excesso de confidencialidade:

• A CIA classificou como confidencial um relatório semanal sobre a situação do terrorismo em 17 de dezembro de 1974, afirmando: “Uma nova organização de composição incerta, usando o nome ‘Grupo do Mártir Ebenezer Scrooge‘, planeia sabotar o voo anual de correio do governo do Pólo Norte…” O memorando, uma piada interna da CIA, não se tornou público até 1999.

• Um dossiê biográfico do governo de 1975 sobre o ex-general chileno Augusto Pinochet, mantido em segredo por motivos de segurança nacional, afirmava que a bebida favorita do ditador era “whiskey com pisco sour”.

• O governo argumentou que os registos que documentam o sexo do cão Conan, que participou do ataque de 2019 para matar o líder do Estado Islâmico Abu Bakr al-Baghdadi, eram um segredo de segurança nacional.

• Documentos históricos sobre a Baía dos Porcos foram divulgados em 2016, após décadas da CIA a argumentar que as informações “confundiriam o público”. Na verdade, estavam a encobrir disputas políticas internas embaraçosas.

Às vezes, os registos são mantidos em segredo para evitar críticas, como os documentos ocultados pelo governo de George W. Bush para encobrir as instruções de tortura efetiva.

Transparência vs sigilo

Muitas recomendações para diminuir a superclassificação foram oferecidas por especialistas e comissões especiais ao longo das décadas, com pouco progresso. As agências federais opõem-se à transparência, os Presidentes cedem ao sigilo e a inércia da burocracia federal favorece o status quo. Mas talvez a cooperação bipartidária no Congresso possa chegar a algum lugar em várias frentes.

Os legisladores poderiam simplificar os níveis de classificação, concentrando-se apenas em quais informações específicas realmente prejudicariam a segurança nacional e alinhariam o nível de proteção com o nível de dano.

O aumento significativo do financiamento ajudaria a modernizar as operações da Administração dos Arquivos Nacionais,que supervisiona os esforços de classificação e é prejudicada pela tecnologia antiga num mundo digitalizado. O orçamento anual da agência estagnou em cerca de 320 milhões de dólares nas últimas três décadas.

Finalmente, as classificações podem ser imprevisíveis, e as agências devem ser obrigadas a delinear com precisão o que é confidencial e o que não é e rotular as partes classificadas dos registos com precisão, conforme recomendado no ano passado pelo Comité Consultivo Federal FOIA.

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